O Tratado de Petrópolis (cujo nome completo era Tratado de Petrópolis. Permuta de territórios e outras compensações entre o Brasil e a Bolívia) foi assinado em 17 de novembro de 1903 após um longo histórico de tensões entre brasileiros e bolivianos no atual território, bem como uma série de negociações diplomáticas entre ambos os estados contratantes.
Sob o ponto de vista jurídico, estava em vigor, até 1903, o Tratado de Ayacucho de 1867, de acordo com o qual o Brasil reconhecia o Acre como território boliviano.Sob o ponto de vista econômico, o Brasil estava passando, em 1903, pelo chamado ciclo da borracha (1879 1912)[1], período em que a exploração do látex, matéria-prima para a produção de borracha, aportou à região norte do Brasil uma importância econômica e social até então desconhecida naqueles confins. Conforme indicado por Flávia Lima e Alves: De fato, a produção industrial da borracha — viabilizada pelo processo de vulcanização inventado por Charles Goodyear em 1839 — deu origem ao advento dos pneumáticos, item fundamental da vigorosa e ascendente indústria automobilística.[2]
A grande demanda pelo então chamado ouro branco levou grandes levas de brasileiros (especialmente nordestinos e, ainda mais especificamente cearenses, em razão das dramáticas secas que atingiam repetidamente a região) à selva amazônica, pela bacia do Rio Acre, com o propósito de aí realizar explorações extrativistas.
Uma série de conflitos entre os imigrantes brasileiros e os bolivianos que também acudiram à região levou a uma forte tensão entre a Bolívia e o Brasil, tendo o chanceler brasileiro na ocasião, o Barão do Rio Branco, solucionado a questão mediante a assinatura do Tratado de Petrópolis de 1903.
A atuação do Barão do Rio Branco
O Barão do Rio Branco era tributário da visão realista das relações internacionais. De fato, de acordo com Cervo e Bueno: A visão realista de Rio Branco permitia-lhe perceber, como outros de seu tempo, o peso dos Estados Unidos na nova distribuição do poder mundial e o fato de que a América Latina estava em sua capacidade de influência. [...] Ademais, Rio Branco não via a possibilidade de se formar no continente nenhum bloco de poder capaz de opor-se aos Estados Unidos, em razão da fraqueza e da falta de coesão dos países hispânicos.[4]
Segundo Cervo e Bueno, ainda, a principal obra de Rio Branco foi a solução de pendências lindeiras. De fato, em 1903, no ano seguinte após sua nomeação, o Barão teve de enfrentar a chamada “questão do Acre”, a qual foi resolvida mediante a celebração do Tratado de Petrópolis.
Resultados do Tratado de Petrópolis. A construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré
Como resultado da assinatura do Tratado de Petrópolis, o Brasil: (a) pagou à Bolívia o valor de 2 milhões de libras esterlinas; (b) indenizou o Bolivian Syndicate[6] em 110 mil libras esterlinas pela rescisão do contrato de arrendamento celebrado em 1901 com o governo boliviano; (c) cedeu à Bolívia algumas terras no Amazonas; e (d) comprometeu-se a construir a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré para escoar a produção boliviana pelo Rio Amazonas.
Versa o Artigo VII do Tratado de Petrópolis, in verbis: Os Estados Unidos do Brasil obrigam-se a construir em território brasileiro, por si ou por empresa particular, uma ferrovia desde o porto de Santo Antônio, no Rio Madeira, até Guajará-Mirim, no Mamoré, com um ramal que, passando por Vila Murtinho ou outro ponto próximo (Estado de Mato Grosso), chegue a Vila Bela (Bolívia), na confluência do Beni e do Mamoré. Dessa ferrovia, que o Brasil se esforçará por concluir no prazo de quatro anos, usarão ambos os países com direito às mesmas franquezas e tarifas.
O objetivo principal da referida estrada de ferro era facilitar o escoamento de mercadorias (em particular a borracha) bolivianas e brasileiras até um local onde essas pudessem ser embarcadas para fins de exportação. No caso, o ponto de embarque era a cidade de Porto Velho, de onde as mercadorias seguiam por via fluvial, pelo Rio Madeira e em seguida pelo Rio Amazonas, até alcançarem o Atlântico. Esse trajeto evitava a penosa transposição de cachoeiras a que estava sujeito o transporte de mercadorias até então, feito de maneira precária, em pequenas embarcações indígenas.
A construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (conhecida popularmente como Mad Maria ou Ferrovia do Diabo, em razão das milhares de mortes de trabalhadores ocorridas durante a sua construção) foi realizada entre os anos de 1907 (quando o financista-magnata estadunidense Percival Farquhar assumiu o respectivo contrato) e 1912. Em 30 de abril desse ano registrou-se a chegada da primeira composição ao município de Guajará-Mirim, conforme previsto no contrato.
O monopólio da borracha brasileira dura até 1910, quando holandeses e ingleses iniciaram o cultivo intensivo de seringueiras no sul da Ásia (em particular, Sri Lanka, Malásia e Indonésia), e os belgas o fizeram no então Congo Belga, passando a concorrer diretamente com a borracha brasileira e oferecendo o produto a preços mais competitivos. Consequentemente, no norte do Brasil, desencadeia-se uma grave crise econômica, gerada pela falta de visão empresarial e governamental, além da ausência de alternativas para o desenvolvimento regional.[7] Desta forma, quando a Madeira-Mamoré foi concluída, em 1912, o ambiente econômico da região já era completamente desfavorável e aquilo que deveria ser uma obra grandiosa e servidora do progresso burguês, sustentado pelos capitais financeiros internacionais, tornou-se um gigantesco “elefante branco” no meio da selva.
No início da década de 1930, o funcionamento da ferrovia foi temporariamente paralisado. Esta veio a ter sua importância renovada durante a Segunda Guerra Mundial, devido ao bloqueio ao comércio do látex malaio pelas forças japonesas de ocupação. Seu canto de cisne deu-se em 1972, quando foi definitivamente desativada.
É interessante fazer um paralelo das nacionalidades que se fizeram presentes na construção da Madeira-Mamoré com a importação de mão de obra estrangeira, principalmente europeia e branca (com predomínio de italianos, alemães e espanhóis), e que se instalava majoritariamente nas regiões Sudeste e Sul do Brasil. Esta imigração europeia se encaixava no contexto da política de “branqueamento” da população, estimulada pelo governo federal para substituir a mão de obra escrava, abolida em 1888, com o respaldo das teorias racistas então em voga.
Por outro lado, o fenômeno das diversas exposições universais que ocorreram desde meados do século XIX até o início do século XX, sempre nos principais centros europeus (Londres, Paris, Viena) e estadunidenses (Filadélfia, Chicago, Saint-Louis, San Francisco), como expressões do poderio e exibicionismo burgueses, não deixou de causar impactos no Brasil, que passou a organizar Exposições Nacionais. É nesse contexto que surgiria o projeto de construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, de acordo com Foot Hardman.
O Tratado de Petrópolis de 1903 entre Brasil e Bolívia foi um dos atos da política externa do Barão do Rio Branco. Uma de suas consequências foi a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, para que a Bolívia pudesse escoar com mais agilidade sua produção de látex, dentro do contexto do ciclo da borracha. Com o fim do referido ciclo e a decadência dos seringais da Amazônia, a estrada de ferro perdeu a utilidade para a qual foi concebida e serve de memória histórica de uma época de ostentação burguesa e livre circulação do capital financeiro.
Referências bibliográficas
CERVO, Amado Luiz e BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. Brasília: Editora UnB, 2008.
DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. A política platina do Barão do Rio Branco. Revista brasileira de política internacional, v. 43, n 2, p. 130-149. Brasília, julho/dezembro 2000. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-73292000000200006 (consulta em 04/12/2014).
FOOT HARDMAN, Francisco. Trem-Fantasma: A ferrovia Madeira–Mamoré e a modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 (2ª edição revista e ampliada, 1ª reimpressão).
LIMA E ALVES, Flávia. O Tratado de Petrópolis – Interiorização do conflito de fronteiras. Revista de informação legislativa, v. 42, n. 166, p. 131-149, abr./jun. 2005. Disponível em http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/495 (consulta em 04/12/2014).
Referências literárias à Questão do Acre, ao Ciclo da Borracha na Amazônia e à Ferrovia Madeira-Mamoré:
SOUZA, Márcio. Galvez Imperador do Acre. Rio de Janeiro: Record, 2010 (19ª edição).
SOUZA, Márcio. Mad Maria. Rio de Janeiro: Record, 2005 (4ª edição).
VARGAS LLOSA, Mario. El sueño del celta. Alfaguara – Santillana Ediciones Generales, 2010.
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