A saga de Dana Merrill, proporcionou a impressionante documentação fotográfica do final da construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, nos possibilitando viajar no tempo e espaço para o passado, e principio dos primeiros passos de ocupação da futura cidade de Porto Velho, capital do Estado de Rondônia.
O nova-iorquino Dana Merrill desembarcou, em Porto Velho, com seu equipamento para registrar tudo o que se passava naquele imenso canteiro de obras, em meio à selva, suas surpresas e suas armadilhas para homens acostumados a viver em ambientes urbanos. O ano era 1909, quase às vésperas da sucessivamente adiada inauguração da ferrovia que abriu um sinuoso caminho na Amazônia. O fotógrafo, contratado pelos engenheiros responsáveis pela construção, vinha com a missão de registrar a colocação de trilhos, vigas e pontes. Permaneceu na área, atento a tudo que pudesse registrar com suas lentes, até 1912, quando finalmente as locomotivas começaram a operar sistematicamente. Deu por concluído seu trabalho e retornou aos Estados Unidos, sem deixar rastros de sua trilha posterior.
Tarefas de longa duração e grande distância da base não eram incomuns nessa época de desenvolvimento da sociedade e da própria fotografia, cada vez mais ligada à idéia de modernidade que acompanhou seu nascimento. A transformação e o crescimento das cidades, tal como o progresso ligado à tecnologia, sempre foram temas caros à fotografia. Nada mais moderno que abrir caminhos para a passagem dos trilhos que descortinavam novos horizontes. No Brasil mesmo, fotógrafos como Marc Ferrez (1843-1923),Augusto Malta(1864-1957), Guilherme Gaensly (1843-1928) acompanharam a abertura de ruas e a instalação dos serviços de bondes, a convite das prefeituras do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Fotografias que, na ocasião, nada tinham de pessoal ou artístico, senão um objetivo documental, captavam cenários que fugiam dos registros dos grandes paisagistas do século XIX: eram encomendas que com o passar dos anos se transformaram na nossa idéia de cidade, elas mesmas partes integrantes da própria história. Não era diferente nos Estados Unidos, onde novos movimentos das vanguardas fotográficas - como o Photosecession, criado por Alfred Stieglitz, em 1902 em Nova York, por exemplo-ofereciam matéria de debate para o tema da contemplação da imagem e transferiam seu interesse para a funcionalidade da imagem e a experimentação da fotografia, com os olhos voltados para a modernização do espaço urbano.
Não é de espantar,
portanto, nem constitui novidade em si, o fato de o proprietário do
conglomerado Madeira-Mamoré Railway, o engenheiro americano Percival Farquhar,
ter contratado um fotógrafo. O interessante é o itinerário que essas fotos
percorreram para chegar até a atualidade. E como elas chegaram. Pouco se
conhece da vida de Dana Merrill. Nem mesmo sua data de nascimento ou de morte.
Mas sabe-se que era funcionário da prefeitura de Nova York e, portanto, talvez
estivesse familiarizado com o trabalho de registro. Ao deparar com o cenário
amazônico, ele prontamente deve ter se conscientizado do que tinha pela frente:
ajustar as lentes apenas para os aspectos da engenharia seria muito pouco
frente ao mundo que se descortinava diante de seus olhos atentos. Passou a
registrar, então, o cotidiano e seu entorno-o hospital, a lavanderia, a lida
dos homens em campo, os desafios que enfrentavam frente à natureza exuberante.
A partir desse interesse acurado, Merrill construiu um valioso documento visual, em que ao mesmo tempo capta e enaltece o progresso e o lado humano da história. Parte do acervo, precisamente 189 negativos, está preservada no Museu Paulista, desde julho de 1999.Fotografar, naquele tempo, não era fácil. Havia algumas limitações tecnológicas. O equipamento que ele usava era semelhante ao normalmente usado por seus colegas de profissão, informou o fotógrafo e arquiteto Pedro Ribeiro, no catálogo da exposição Ferrovia Madeira-Mamoré-Trilhos e Sonhos, realizada no Rio de Janeiro em 2000. Para gravar as imagens, em formato 13 x18, uItilizavam-se chapas de vidro. Merrill trouxe também film pack, placas de acetato-mais flexíveis que o vidro e menos frágeis-criadas nos EUA em 1903. Essa opção permitia ao fotógrafo uma considerável economia de peso no equipa- mento e mais agilidade na troca de chapas. Contudo, a câmera usada continuava sendo aquela convencional, mais apropriada para a execucão das documentacões tradicionais, tomadas a média distância, rigorosamente enquadradas e privilegiando a pose, que de certa forma era induzida pelo compulsório tripé.
Calcula-se que, nos três anos de sua permanência no Brasil, Dana Merrill tenha feito mais de 2 mil negativos. Durante muito tempo nada se soube dessa documentação, até que, em 1956, uma caixa com o material chegou as mãos do jornalista e pesquisador Manuel Rodrigues Ferreira. Em depoimento ao museu, ele revelou que o pacote lhe foi entregue pelo "repórter fotográfico Ari André, que por sua vez o recebeu do filho de um dos engenheiros que havia trabalhado na construção da estrada: Rodolfo Kesserling". Ferreira se interessou pela documentação da estrada de ferro e devolveu o restante, precisamente a documentação da selva. Ele apenas separou o material da ferrovia, porque estava trabalhando justo nesse tema. Das quase 2 mil fotos, Manuel Ferreira ficou com 189 apenas:40 negativos de vidro e 149 de acetato. Esse material lhe permitiu produzir mais de uma dezena de reportagens ilustradas com imagens desconhecidas na época.
Em 1959, Manuel Ferreira publicou o livro que se tornaria um clássico dessa história e um dos mais completos: A ferrovia do diabo. As imagens, ele as havia identificado, mas faltava saber o nome do fotógrafo. Até então ninguém sabia quem tinha sido autor do projeto. Três anos depois da publicação de seu livro, Manuel Rodrigues Ferreira tomou conhecimento de um livro escrito por Frank Kravign (The jungle route). No livro mais imagens inéditas da construção da Madeira-Mamoré, inclusive do fotógrafo Dana Merrill. Assim, Manoel pôde, finalmente, identificar a autoria do conjunto de negativos em seu poder.
Durante mais de 40 anos, Manuel Rodrigues Ferreira preservou e guardou esse material. Generoso, compreendeu que parte dessa história deveria ficar sob os cuidados de um órgão público. Durante anos, tentou inutilmente com a iniciativa privada conseguir patrocínio ou ajuda para cuidar do material, chegou até a oferecer na década de 90 para o Governo do Estado de Rondônia. Até que, no final dos anos 1990, os 149 negativos foram comprados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social(BNDES) e doados ao Museu Paulista da USP, passando a integrar uma das mais importantes coleções de fotografia brasileira: A coleção não chega inédita ao museu. Muitas dessas imagens já foram publicadas no mundo todo. É importante a temática, seu olhar antropológico, o olhar do outro. Mas ele não foge muito do padrão da época.
É interessante lembrar que no Instituto Manguinhos do Rio de Janeiro também foram encontradas fotos dessa mesma coleçāo. Provavelmente fotos que ele deu de presente a um dos médicos que visitou a região, na época considerada bastante insalubre. Houve uma expedição do Oswaldo Cruz e de outros médicos.
Inéditas ou não, não importa. É a única documentação que temos daquele período. E referência para qualquer estudioso. O departamento de pesquisa da TV Globo, por exemplo, foi ao Museu Paulista pesquisar as imagens para produzir os cenários de sua minissérie Mad Maria, gravada em Rondônia, as margens do Rio Madeira e do trajeto que resta da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Aos poucos vamos recuperando nossa história, mesmo que seja por vias estranhas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário