domingo, 5 de fevereiro de 2023

Memória, História e Esquecimento, A Saga da Madeira-Mamoré

Em 1927, passados apenas 15 anos do assentamento dos derradeiros trilhos da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, o escritor Mário de Andrade, em excursão pelo Nordeste e Norte do Brasil, anotava em seu diário de viagem, ao percorrer aquela lendária ferrovia, até a fronteira boliviana: “O trem lá vai sacolejando. E sou mesmo eu que me sacolejo monótono nesta que é das mais terriveis estradas-de-ferro do mundo... Não... não se pode dizer que seja bonito não... Chãos péssimos de cerrado, matos fracos, alagadiços, pauis ainda negros, beirando o rio encachoeirado e apenas. 


Ninguém topa no caminho com Atenas nem com Buenos Aires. Ninguém terá pra ver, depois de se lavar no hotel, alguma catedral 
de Burgos...Mas estes trilhos foram plantados sem reis do Egito e sem escravos...

Sem escravos?...Pelo menos sem escravos matados a relho...Milhares de chineses , de portugueses, bolivianos, barbadianos, italianos, árabes, gregos, vindos a troco de libra. Tudo quanto era nariz e pele diferente andou por aqui deitando com uma febrinha na bocada-noite pra amanhecer no nunca mais. O que eu vim fazer aqui...”. Entre memória e esquecimento, o poeta modernista divagava neste diário fantástico que é o seu O turista aprendiz, inédito até o ano de 1976, quando foi editado pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP, sob a batuta infatigável de Telê Porto Ancona Lopez. E sua imaginação podia apenas vislumbrar, no desolamento daqueles cenários, a epopéia que pelo menos três dezenas de milhares de heróis anônimos tinham vivido ali, naquela Babel moderna, representando mais de 50 diferentes etnias e nacionalidades, nas quatro décadas que separam a primeira tentativa fracassada de construcão da ferrovia Madeira-Mamoré da fixação de seu último dormente, em Guajará-Mirim, a quase 400 quilometros de seu marco zero, em Porto Velho.


E Mário, como num canto elegíaco, reitera seu mote: “O que eu vim fazer aqui... Qual a razão de todos esses mortos internacionais que renascem na bulha da locomotiva e vêm com seus olhinhos de luz fraca me espiar pelas janelinhas do vagāo?.. É Guajará-Mirim, pouco mais de vinte e uma horas. Recepção. Cansaço. Não há acomodação pra todos. Alimento uma mentalidade de estouro. Falo pouco, fazendo força pra me tornar antipático, recuso coisas. Recuso dormida em casa particular, dormirei no vagão! Não tenho água pra banho. Banho de cachaça. E durmo no vagão, heroicamente, sem medo das maleitas nem dos mortos, com um gosto raivoso de fraternidade nas mãos”.



A história da Madeira-Mamoré é a de uma sucessão de ciclos descontínuos de vida e morte, prosperidade e miséria, lembranças e luta. Encravada na selva e no cerrado do extremo noroeste brasileiro, sua construção foi não só determinada por razões econômicas, vinculadas à expansão do capitalismo financeiro internacional e ao novo mapa que o imperialismo foi desenhando nos vários continentes, desde a “década de ouro” do capital (1870) até a Primeira Guerra Mundial. E nesse movimento amplo de interesses e empreendimentos, formou-se uma força de trabalho igualmente internacionalizada, constituída de massas miseráveis e semi-escravizadas latino-americanas, africanas, asiáticas e europeias, que encenaram uma nova diáspora dos tempos modernos, sem pátria nem leis, em deslocamento perene, movidas à custa de Chuva, vapor e velocidade, para retomarmos as imagens que serviram de elementos para a composição da magistral tela homônima do pintor inglês Turner, que antecipava visionariamente o cenário desse drama histórico ainda em 1844.



Se hoje a rede virtual eletrônica simboliza e realiza muito do poder do capital globalizado, podemos considerar, analogamente, a imensa rede planetária de caminhos de ferro, que se formou a partir de 1850,bem como o mapa das rotas de portos e navios a vapor de grande calado como a arquitetura mais realista do poderio e alcance das tenazes do capital, até pelo menos 1930.O historiador  Eric J. Hobsbawm, entre outros, ressaltou com muito brilho esse período de guerras e batalhas dos trilhos, mostrando a íntima associação entre relações capitalistas e expansão ferroviária. Júlio Verne e sua encantadora novela A volta ao mundo em oitenta dias que nos digam...



Mas, além desse peso evidente dos fatores materiais, temos de considerar a atuação forte da ideologia do progresso, da modernização a ferro e fogo que acompanha os passos da civilização técnica ocidental, a partir da expansão mercantilista europeia , desde o século XV, mas conhecendo sua maior aceleração nos séculos XIX e XX. Trens, navios, automóveis, aviões, foguetes, computadores: tudo deve correr para a frente, em ritmo frenético, para impor a dominação do Homo sapiens (será que é sapiente mesmo?) sobre as forças naturais, muito além dos tempos de metabolização biológica ou de adaptação ecológica. Este enlouquecimento de projetos faraônicos modernos a todo vapor acabou por fazer da lentidão, no dizer de escritores como Umberto Eco ou Hans-Magnus Enzensberg , um dos bens mais escassos e valiosos para a humanidade no século XXI. E normalmente, como sói acontecer, essa "corrida ao ouro" (em nosso caso o mitológico "ouro negro" do boom da borracha), quando chega ao finda linha, deixa para trás apenas um rastro de ruínas e ilusões.


Além disso, na saga da Madeira-Mamoré, como em outras ferrovias mundo afora, a questão política essencial, a da soberania dos estados nacionais sobre determinados territórios, esteve presente de modo inegável. Aqui também combinaram-se acordos diplomáticos, conflitos militares (a Guerra do Acre é seu capítulo mais notório), pressões de grupos organizados sobre governos e parlamentos, enfim, os ingredientes que deveriam intervir na luta pela demarcação das fronteiras territoriais e estabelecimento de zonas francas do capital, dentro do já velho jogo entre imperialismos e nacionalismos, cuja balança, mesmo oscilante, sempre pendeu para o lado mais forte.



O projeto que surge como ancestral mais impressionante e famoso da Madeira-Mamoré foi sem dúvida o Forte Príncipe da Beira, construído durante o período pombalino, no século XVIII, na região do rio Guaporé, para demarcar os limites entre domínios portugueses e hispânicos, maior fortaleza militar ultramarina erguida por Lisboa, e que logo adiante, quase escondido  pela cobertura vegetal da floresta, ia se corroendo como grandes blocos de pedras, meras ruínas na selva de um colonialismo decadente. Já a descendente em linhagem direta da Mad Maria, nos anos 70 do século XX, em plena ditadura militar, foi a rodovia Transamazônica, em seus 4 mil quilômetros com início no porto de Cabedelo, Paraíba, e término no Acre. cerca de uma década depois de concluída, a natureza amazônica envolvia seu leito em tentáculos aquáticos e vegetais incontornáveis, desde o território do Maranhão. A estrada era engolida pela selva.



Lembrar hoje da Madeira-Mamoré não deve se reduzir a um mero exercício de nostalgia. A memória pode e deve servir sempre como iluminação da cena presente, como instrumento de resistência e luta, como estímulo para as gerações futuras. 

Primeiro lembremos de seus grandes narradores. As tragédias de Canudos, Contestado e Madeira-Mamoré se equivalem, em grandeza épica, em drama humano, em violência concentrada, em desdobramentos históricos. Mas, se terá faltado a Contestado e à Madeira-Mamoré um narrador à altura poética de Euclides da Cunha em Os sertões, não podemos ignorar esse imenso narrador coletivo da memória popular. Por outro lado, para a ferrovia da selva, temos de registrar o incansável trabalho de Sísifo de engenheiros-historiadores, que produ-ziram narrativas exemplares, hoje clássicas, como as de Neville Craig, Estrada de ferro Madeira-Mamoré: história trágica de uma expedicāo  (1907) e de Manoel Rodrigues Ferreira, A ferrovia do diabo: história de uma estrada de ferro na Amazônia(1960).E ,mais  modernamente, um romance como o Mad Maria, de Márcio Souza (1980), repôs a história para o público contemporâneo. Mas o cronista maior daquele palco e drama, a meu ver, continua sendo o fotógrafo nova-iorquino Dana Merrill que, nas cerca de 2 mil chapas que gravou do trabalho de construção da ferrovia, deixou, nas tão-somente pouco mais de 200 que chegaram até nós, signos visuais únicos e os mais realistas que se puderam forjar, daquela história, que com suas imagens deixava definitivamente de ser apenas técnica, contábil ou empresarial para se converter em história social do trabalho, em história humana.

Aleks Palitot

Historiador Mestre



quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

A Viagem no Tempo, Madeira- Mamoré

 

A saga de Dana Merrill, proporcionou a impressionante documentação fotográfica do final da construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, nos possibilitando viajar no tempo e espaço para o passado, e principio dos primeiros passos de ocupação da futura cidade de Porto Velho, capital do Estado de Rondônia.


    O nova-iorquino Dana Merrill desembarcou, em Porto Velho, com seu equipamento para registrar tudo o que se passava naquele imenso canteiro de obras, em meio à selva, suas surpresas e suas armadilhas para homens acostumados a viver em ambientes urbanos. O ano era 1909, quase às vésperas da sucessivamente adiada inauguração da ferrovia que abriu um sinuoso caminho na Amazônia. O fotógrafo, contratado pelos engenheiros responsáveis pela construção, vinha com a missão de registrar a colocação de trilhos, vigas e pontes. Permaneceu na área, atento a tudo que pudesse registrar com suas lentes, até 1912, quando finalmente as locomotivas começaram a operar sistematicamente. Deu por concluído seu trabalho e retornou aos Estados Unidos, sem deixar rastros de sua trilha posterior.


           Tarefas de longa duração e grande distância da base não eram incomuns nessa época de desenvolvimento da sociedade e da própria fotografia, cada vez mais ligada à idéia de modernidade que acompanhou seu nascimento. A transformação e o crescimento das cidades, tal como o progresso ligado à tecnologia, sempre foram temas caros à fotografia. Nada mais moderno que abrir caminhos para a passagem dos trilhos que descortinavam novos horizontes. No Brasil mesmo, fotógrafos como Marc Ferrez (1843-1923),Augusto Malta(1864-1957), Guilherme Gaensly (1843-1928) acompanharam a abertura de ruas e a instalação dos serviços de bondes, a convite das prefeituras do Rio de Janeiro e de São Paulo.

      Fotografias que, na ocasião, nada tinham de pessoal ou artístico, senão um objetivo documental, captavam cenários que fugiam dos registros dos grandes paisagistas do século XIX: eram encomendas que com o passar dos anos se transformaram na nossa idéia de cidade, elas mesmas partes integrantes da própria história. Não era diferente nos Estados Unidos, onde novos movimentos das vanguardas fotográficas - como o Photosecession, criado por Alfred Stieglitz, em 1902 em Nova York, por exemplo-ofereciam matéria de debate para o tema da contemplação da imagem e transferiam seu interesse para a funcionalidade da imagem e a experimentação da fotografia, com os olhos voltados para a modernização do espaço urbano.




    Não é de espantar, portanto, nem constitui novidade em si, o fato de o proprietário do conglomerado Madeira-Mamoré Railway, o engenheiro americano Percival Farquhar, ter contratado um fotógrafo. O interessante é o itinerário que essas fotos percorreram para chegar até a atualidade. E como elas chegaram. Pouco se conhece da vida de Dana Merrill. Nem mesmo sua data de nascimento ou de morte. Mas sabe-se que era funcionário da prefeitura de Nova York e, portanto, talvez estivesse familiarizado com o trabalho de registro. Ao deparar com o cenário amazônico, ele prontamente deve ter se conscientizado do que tinha pela frente: ajustar as lentes apenas para os aspectos da engenharia seria muito pouco frente ao mundo que se descortinava diante de seus olhos atentos. Passou a registrar, então, o cotidiano e seu entorno-o hospital, a lavanderia, a lida dos homens em campo, os desafios que enfrentavam frente à natureza exuberante.


      A partir desse interesse acurado, Merrill construiu um valioso documento visual, em que ao mesmo tempo capta e enaltece o progresso e o lado humano da história. Parte do acervo, precisamente 189 negativos, está preservada no Museu Paulista, desde julho de 1999.Fotografar, naquele tempo, não era fácil. Havia algumas limitações tecnológicas. O equipamento que ele usava era semelhante ao normalmente usado por seus colegas de profissão, informou o fotógrafo e arquiteto Pedro Ribeiro, no catálogo da exposição Ferrovia Madeira-Mamoré-Trilhos e Sonhos, realizada no Rio de Janeiro em 2000. Para gravar as imagens, em formato 13 x18, uItilizavam-se chapas de vidro. Merrill trouxe também film pack, placas de acetato-mais flexíveis que o vidro e menos frágeis-criadas nos EUA em 1903. Essa opção permitia ao fotógrafo uma considerável economia de peso no equipa- mento e mais agilidade na troca de chapas. Contudo, a câmera usada continuava sendo aquela convencional, mais apropriada para a execucão das documentacões tradicionais, tomadas a média distância, rigorosamente enquadradas e privilegiando a pose, que de certa forma era induzida pelo compulsório tripé.


      As limitações técnicas não impediram o profissional de procurar novos ângulos e perspectivas. O que temos em acervo é apenas uma pequena parte da produção do Dana Merrill. O conjunto de fotos, porém, evidencia como ele foi muito além da missão para a qual o contrataram, no confronto com a floresta. Ficou imbuído do espírito das grandes expedições do século XIX. Sabemos que ele fotografou a flora, a fauna, os índios. Pena que esse material se perdeu.
Calcula-se que, nos três anos de sua permanência no Brasil, Dana Merrill tenha feito mais de 2 mil negativos. Durante muito tempo nada se soube dessa documentação, até que, em 1956, uma caixa com o material chegou as mãos do jornalista e pesquisador Manuel Rodrigues Ferreira. Em depoimento ao museu, ele revelou que o pacote lhe foi entregue pelo "repórter fotográfico Ari André, que por sua vez o recebeu do filho de um dos engenheiros que havia trabalhado na construção da estrada: Rodolfo Kesserling". Ferreira se interessou pela documentação da estrada de ferro e devolveu o restante, precisamente a documentação da selva. Ele apenas separou o material da ferrovia, porque estava trabalhando justo nesse tema. Das quase 2 mil fotos, Manuel Ferreira ficou com 189 apenas:40 negativos de vidro e 149 de acetato. Esse material lhe permitiu produzir mais de uma dezena de reportagens ilustradas com imagens desconhecidas na época.

        Em 1959, Manuel Ferreira publicou o livro que se tornaria um clássico dessa história e um dos mais completos: A ferrovia do diabo. As imagens, ele as havia identificado, mas faltava saber o nome do fotógrafo. Até então ninguém sabia quem tinha sido autor do projeto. Três anos depois da publicação de seu livro, Manuel Rodrigues Ferreira tomou conhecimento de um livro escrito por Frank Kravign (The jungle route). No livro mais imagens inéditas da construção da Madeira-Mamoré, inclusive do fotógrafo Dana Merrill. Assim, Manoel pôde, finalmente, identificar a autoria do conjunto de negativos em seu poder.


      Durante mais de 40 anos, Manuel Rodrigues Ferreira preservou e guardou esse material. Generoso, compreendeu que parte dessa história deveria ficar sob os cuidados de um órgão público. Durante anos, tentou inutilmente com a iniciativa privada conseguir patrocínio ou ajuda para cuidar do material, chegou até a oferecer na década de 90 para o Governo do Estado de Rondônia. Até que, no final dos anos 1990, os 149 negativos foram comprados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social(BNDES) e doados ao Museu Paulista da USP, passando a integrar uma das mais importantes coleções de fotografia brasileira: A coleção não chega inédita ao museu. Muitas dessas imagens já foram publicadas no mundo todo. É importante a temática, seu olhar antropológico, o olhar do outro. Mas ele não foge muito do padrão da época.

 É interessante lembrar que no Instituto Manguinhos do Rio de Janeiro também foram encontradas fotos dessa mesma coleçāo. Provavelmente fotos que ele deu de presente a um dos médicos que visitou a região, na época considerada bastante insalubre. Houve uma expedição do Oswaldo Cruz e de outros médicos.


      Inéditas ou não, não importa. É a única documentação que temos daquele período. E referência para qualquer estudioso. O departamento de pesquisa da TV Globo, por exemplo, foi ao Museu Paulista pesquisar as imagens para produzir os cenários de sua minissérie Mad Maria, gravada em Rondônia, as margens do Rio Madeira e do trajeto que resta da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Aos poucos vamos recuperando nossa história, mesmo que seja por vias estranhas.  
 Autor:
Aleks Palitot
Historiador Mestre