domingo, 17 de setembro de 2023

Candelária, vestígios de uma História

 O problema crucial da construção da E.F. Madeira-Mamoré foi o sanitário. Insucessos ocorreram no século XIX. O primeiro aconteceu quando os trabalhos da Public Works Construction que se estenderam de julho de 1872 a janeiro de 1874 segundo relatam Craig: "Seus homens morriam como moscas”" e Manoel Ferreira: “Julgar-se pelas notícias próprias da época, o número de mortos deve ter-se elevado a centenas”.38

Durante a permanência da segunda empreiteira, P. & T. Collins, que durou dezoito meses, cobrindo parte dos anos de 1878 a 1879, não se fez o registro dos óbitos ocorridos entre os nativos, mas sabe-se que a mortandade foi grande, principalmente entre os cearenses.


Essas empresas contratadas pela National Bolivian Navigation organizada pelo Cel. George Earl Church que obteve a concessão do governo boliviano não conseguiram êxito devido à falta de conhecimentos científicos que não permitiram abordar a insalubridade local com bases em uma tecnologia científica comprovada.

Quando, em 1907, a última e vitoriosa tentativa de ser construída a ferrovia foi iniciada, a etiologia da malária já havia sido demonstrada, em 1898, pelos estudos de Ross, coadjuvados pelos de Grassi, e o combate às endemias veiculadas por mosquitos haviam obtido resultados positivos em Cuba e Rio de Janeiro, no âmbito da febre amarela, e no Canal do Panamá no que concernia à malária.

Encarando inteligentemente a questão sanitária e aproveitando as experiências de Cuba e do Panamá, a Madeira-Mamoré Railway Co., transferiu o início da ferrovia, de Santo Antônio do Madeira, área doentia onde grassava epidemicamente durante o ano todo, a malária, dizimando indiscriminadamente velhos, moços e crianças, para o barranco de Porto Velho, cerca de sete quilômetros rio abaixo, por apresentar excelentes condições sanitárias, naturais e hidrográficas.


Instalou-se, então a empresa construtora contratada, a May, Jekyll & Randolph em duas zonas distintas: a primeira, denominada Porto Velho, compreendida entre Porto Velho e o acampamento "Henrique Dias”, da zona norte, da Comissão Rondon, onde foi implantado o centro de serviços sanitários composto do hospital da Candelária e de postos situados na construção e exploração da linha.

O hospital possuía vinte e um pavilhões de madeira,cobertos de protegidas por telas de cobre visando impedir a entrada dos anofelinos. Esses pavilhões eram distribuídos na colina, sendo seis deles sedes de enfermarias, que medem 30m por 11,50m, podendo a áera total conter 250 leitos. Num destes pavilhōes está a sala de operações, provida de completo material de cirurgia, análises diversas.


Esse centro hospitalar tinha uma equipe comprometida, dedicada, chefiada pelo médico Carl Lovelace, responsável também pela enfermaria de primeira classe. A distribuição de médicos em 1910, segundo Oswaldo Cruz, todos norte-americanos, localizava-se sete em postos situados na construção e exploração da linha, quatro no Hospital da Candelária onde havia oito enfermeiros, na maioria diplomados , um no dispensário de Porto Velho e um para o navio que transportava pessoal de Manaus e Itacoatiara, portos fluviais onde havia um posto com um médico. Eram dezessete médicos no total. Dentre eles, os médicos Walcott, Belt, Walsh e Whitaker, responsáveis pelas enfermarias do Hospital da Candelária.

A assistência médica, portanto, foi, como ainda o é, no campo das grandes empreitadas de engenharia, uma forma de reduzir despesas, preservar os recursos humanos, qualificados ou não, e potencializar o resultado traduzido pela realização dos objetivos dentro dos custos compatíveis com a ordem econômica, social e política vigentes. E foi essa assistência médica prestada no Hospital da Candelária, ao longo da linha férrea e nos pontos de embarque e transporte dos recrutados, aliando aspectos curativos e preventivos que permitiram o sucesso da construção da estrada de ferro. Os leitos hospitalares eram complementados por um lazareto, escreve Oswaldo Cruz, em uma ilha próxima a Santo Antônio, destinado a doenças contagiosas, pois em Candelária somente havia enfermaria para isolamento de tuberculosos e amarílicos.


Tendo como cenário o Rio Madeira, o complexo era cercado de jardins, bem cuidados e de um pomar que o separava do cemitério. Eram mantidos frutíferas nativas ou aclimatadas à região, cujos frutos constituem uma das mais ricas fontes de elementos nutritivos para a alimentação humana. Inicialmente foram plantados 70.000 pés de abacaxis e 500 pés de rosa, cavalo, manguita, rosinha; laranjeiras, abacateiros,cajueiros, cupuaçuzeiros,cajaranas, gravioleiras, biribazeiros, ateiras, bananeiras, tais como: comprida, prata, branca, chorona, inajá, pacovão e dentre outras. Certa ocasião, à época do estio, um pavoroso incêndio que lavrara a alguns vento forte, o belo pomar, reduzindo milhares de árvores já crescidas em carbonizados troncos ou montões de cinzas.


Havia criadouros de aves domésticas e de porcos. Candelária foi um dos primeiros lugares no Brasil que se criou os gigantescos porcos da raça Berkshire, cujos capados, adultos, pesavam cerca de 200 quilos.

O cemitério ficava logo depois do pomar, local onde eram sepultados apenas os estrangeiros. Alguns túmulos apresentavam lajes em vários idiomas. Atente-se para um fato significativo: "No cemitério da Candelária só se enterravam alienígenas e uma única exceção, uma mulher brasileira, Lydia Xavier, cuja tumba tem inscrição em inglês, deveu-se ao fato de ser essa jovem amante de um engenheiro norte-americano que buscou, com esse enterro discreto, evitar o escândalo a que seria condenado o seu romance, se descoberto fosse". O óbito teve como causa o envenenamento com sublinado corrosivo. A infeliz Lydia, cometeu suicídio após uma briga com o amante.

Túmulos de Judeus no Cemitério 

A área onde foram instalados o hospital, o pomar e o cemitério pertenciam a "Um italiano chamado Bertini, que lhe dera o nome de Candelária em homenagem a festa de Nossa Senhora das Candeias, também dita de Purificação, que se celebra a 2 de fevereiro.

Escavações de arqueólgos da UNIR na Candelária

É desconhecido o fato de como esse sítio histórico foi adquirido por pessoas físicas. A certidão expedida a 9 de agosto de 1974, pelo escrivão do judicial, tabelião de notas e oficial de registro civil, Durval Gadelha, no Livro n° 3 - B de Transcrição das Transmissões, às folhas 92, consta o registro que o lote de terras denominado "Candelária", à margem esquerda da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, na altura do km 2, possui uma área de 24.359,21㎡ com os seguintes limites: ao norte, sul e oeste, Mamoré, cujo lote tem a forma de um polígono de seis lados, assim Ferrovia Madeira-Mamoré, a partir do km 2; dois lados, sendo um com 70m esquerdos, norte e sul com terras devolutas, no referido lote de terras estão plantados 70 mil pés de abacaxi e 500 bananeiras.

Esta Certidão de venda e compra foi lavrada em razaõ do governo do Território Federal do Guaporé, representado por seu Governador, Joaquím Puglia e sua mulher Cleonice Pontes Di Puglia, no valor de Cr$ 75.000,00 13 de junho de 1950, livro 18, fl. 51-52, pelo Tabelião Durval Gadelha. Alí posteriormente foi construído o prédio do Educandário Belisário Pena. Do pomar ainda restam poucos vestígios e túmulos do cemitério foram profanados.

Recentemente a Universidade Federal de Rondônia realiza as primeiras escavações nas antigas bases e ruínas do antigo hospital. Trabalho exemplar em prol da ciência e do resgate, realizado pelo curso de arquiologia da UNIR. Esse sítio tem valor excepcional do ponto de vista da história, da ciência médica e da beleza natural. 


Aleks Palitot

Mestre e Historiador

Fonte: Yeda Birzacov e Esron de Menezes

domingo, 10 de setembro de 2023

Porto Velho e seus símbolos oficiais

Os símbolos do Município de Porto Velho, (brasão, bandeira e hino), 1983 por uma comissão designada pelo Prefeito Sebastião Assef Valladares, julgadora foi assim constituída: professores Lorival Chagas da Silva, Odete Schokness, Ageu Rosa de Lima, Gesson Álvares de Magalhães e Raimundo Nonato Castro; jornalista Euro Tourinho; arquítetos Sílvio Machado e Luiz Leite de Oliveira; escritora Kléon Maryan; promotor de justiça e escritor Edson Jorge Badra; maestros Carlos Sinfontes e Luiz Machado; artistas plásticos João Zoghbi e Raimundo Paraguaçu de Oliveirae o militar Lauro Magalhães. Essa comissão teve o assessoramento do jornalista João Ciro Pinheiro de Andrade e da professora Madalena Neimaier Duarte, respectivamente, Coordenador de Divulgação de Turismo e Promoção do Gabinete do Prefeito e Diretora da Seção de Assuntos Culturais da Secretaria Municipal de Educação e Cultura.


A comissão escolheu dentre os projetos apresentados, 35 para o brasão, 52 para a bandeira e 12 para o hino, as propostas de autoria do poeta, escritor e acadêmico, fundador da Academia de Letras de Rondônia, Antônio Cândido da Silva (bandeira e brasão). A proposta vencedora do hino (letra e música), foi a do escritor e membro da Academia de Letras de Rondônia, Cláudio Batista Feitosa. Esses símbolos foram instituídos pela Lei Municipal n° 249 de 11 de outubro de 1983, assinada pelo Prefeito Sebastião Assef Valadares.

O simbolismo do hino é significativo e profundo. A interpretaçāo do autor, Cláudio Batista Feitosa, esclarece:

“No eldorado uma gema brilha / em meio a natureza, imortal:/ Porto Velho, cidade Ocidental, justamente no Eldorado - assim como é considerado o Estado privilegiada por concentrar todo um sistema de vias de transportes quadrantes - os interesses econômicos de Rondônia e de outras Unidades da Federação.

"São os teus raios estradas perenes/ onde 

transitam em várias direções / o progresso do 

solo de Rondônia / e o alento de outras 

regiões".


Essa peculiaridade geográfica harmoniza-se, coincide com imagem - sāo materializados pelas estradas existentes por onde viajam, céleres,a esperança e o progresso.

"Nasceste ao calor das oficinas / do parque da 

Madeira - Mamoré / pela forja dos bravos 

pioneiros / imbuídos de coragem e de fé".

Se as duas primeiras estrofes enaltecem a importância da situaçāo geográfica de Porto Velho no concerto da Amazônia Ocidental, a terceira enfoca a sua origem, as suas raízes, alimentadas pela coragem,pela tenacidade e pela fé dos bravos pioneiros, de quantas bandeiras, que vieram construir a Estrada de Ferro Madeira- Mamoré, no alvorecer deste século. Porto Velho, a cidade, nasceu realmente ao calor das oficinas da lendária ferrovia marco indelével do progresso e do desenvolvimento desta região do alto Madeira.

"És a cabeça do Estado vibrante; / és o 

instrumento que energia gera / para a faina 

dos novos operários, / os arquitetos de uma 

nova era".

Finalmente, vê-se Porto Velho projetando-se do presente para o futuro, para o lugar de destaque que a história lhe reservou. Em ligeiro retrospecto, os fatos registram que, mercê do seu desenvolvimento, Porto Velho é responsável pela conquista definitiva do Centro - Oeste da Pátria. Aqui, consolidou-se a trilha de Rondon, alargada, transformada em estrada de rodagem, corredor de exporaçāo da produção do Estado de País, pelo Mato Grosso, pela BR-364, que também, descortina, no sentido do Oeste, a “Saída para o Pacífico", pontificada como solução para o desenvolvimento definitivo do Centro-Oeste, O hino esalta porto e lho vibra, que se arremessa para o futuro garantido pela idreletrica de sua potencialidade para facilitar o trabalho dos nossos pósteros,dos pioneiros, saberão construir com maestria e perfeiçāo o futuro do Município e do Estado.

"No eldorado uma gema brilha / em meio a 

natureza, imortal: / Porto Velho cidade e 

Município, / orgulho da Amazônia Ocidental".

A última estrofe, idêntica à primeira, enfatiza a imagem da gema da jóia preciosa que é Porto Velho, que deve continuar brilhando, singela, nos ideais e nas vozes da juventude do nosso Município responsável pela preservaçāo da nossa memória.

A música é extremamente simples. Com apenas duas variedades propositadamente para facilitar a memorização das estrofes cujas palavras podem ser articuladas por completo, com indisfarçável facilidade, dispensados quaisquer artificios. O ritmo, moderadamente enérgico, sugere a seriedade e o clima, solene e respeitoso, exigido nas execuções dos hinos como este do Município de Porto Velho”. A partitura do hino do Município integra o patrimônio histórico material de Porto Velho.

Na configuração da bandeira contendo 2/3 na cor azul representando nosso céu "sempre azul” e 1/3 na cor amarela fazendo alusão às riquezas do Município, destacam-se as caixas d'água negras, à esquerda. Essas três caixas d'água instaladas pela empresa construtora da E.F. Madeira-Mamoré, resumem a história do surgimento de Porto Velho, centro administrativo e cultural do Estado.

O brasão é "constituído pela figura de três caixas d'água sobrepostas, da sable (negro), em meio a uma coroa formada por um torçal de plantas de arroz, à destra, e por um ramo de seringueira, à sinistra, encimada por uma estrela de cinco pontas, de prata, e sobre esta a legenda Porto Velho, de sable. Sob a figura das três caixas d'água, vê-se um fragmento representativo de uma ferrovia, de sable, composto de de sable. Todo conjunto repousa sobre uma magnificente resplendor de ouro formando uma estrelas de trinta pontos.



Os Símbolos do Município foram apresentados oficialmente à comunidade de Porto Velho em uma solenidade realizada dia 12 de outubro de 1983, na praça das Caixas D'Água, pelo Prefeito Sebastião Assef Valadares. Nessa ocasião, a bandeira foi hasteada pela primeira vez, sendo responsável pelo hasteamento, o engenheiro e professor José Otino de Freitas, Prefeito nomeado do Município de Porto Velho no ano de 1947.

Após 69 anos de criação o Município de Porto Velho que ainda não possuía seus símbolos identificadores, passou a tê-los e a usar seu brasão em documentos oficiais, seu hino entoado e sua bandeira hasteada.

Aleks Palitot

Mestre e Historiador


Fonte: Yeda Borzacov e Esron de Menezes

segunda-feira, 1 de maio de 2023

120 anos do Tratado de Petrópolis

O Tratado de Petrópolis (cujo nome completo era Tratado de Petrópolis. Permuta de territórios e outras compensações entre o Brasil e a Bolívia) foi assinado em 17 de novembro de 1903 após um longo histórico de tensões entre brasileiros e bolivianos no atual território, bem como uma série de negociações diplomáticas entre ambos os estados contratantes. 

Sob o ponto de vista jurídico, estava em vigor, até 1903, o Tratado de Ayacucho de 1867, de acordo com o qual o Brasil reconhecia o Acre como território boliviano. 

Sob o ponto de vista econômico, o Brasil estava passando, em 1903, pelo chamado ciclo da borracha (1879 1912)[1], período em que a exploração do látex, matéria-prima para a produção de borracha, aportou à região norte do Brasil uma importância econômica e social até então desconhecida naqueles confins. Conforme indicado por Flávia Lima e Alves: De fato, a produção industrial da borracha — viabilizada pelo processo de vulcanização inventado por Charles Goodyear em 1839 — deu origem ao advento dos pneumáticos, item fundamental da vigorosa e ascendente indústria automobilística.[2] 


Vale a pena lembrar que, no período entre 1870 (com a unificação da Alemanha) e 1914 (início da I Guerra Mundial), o ambiente econômico em que o mundo vivia era de extremo liberalismo, com pouquíssima ou nenhuma intervenção estatal, graças à adoção das teorias do economista David Ricardo. Há quem chame esse período de “primeira globalização”. A Grã-Bretanha e a Alemanha eram grandes concorrentes por matérias-primas sob o contexto da Segunda Revolução Industrial, competindo também por colônias, um dos motivos que levou à eclosão de Guerra de 1914-1918. 

A grande demanda pelo então chamado ouro branco levou grandes levas de brasileiros (especialmente nordestinos e, ainda mais especificamente cearenses, em razão das dramáticas secas que atingiam repetidamente a região) à selva amazônica, pela bacia do Rio Acre, com o propósito de aí realizar explorações extrativistas. 

Uma série de conflitos entre os imigrantes brasileiros e os bolivianos que também acudiram à região levou a uma forte tensão entre a Bolívia e o Brasil, tendo o chanceler brasileiro na ocasião, o Barão do Rio Branco, solucionado a questão mediante a assinatura do Tratado de Petrópolis de 1903. 


A atuação do Barão do Rio Branco


José Maria da Silva Paranhos Júnior (Rio de Janeiro, 1845 – 1912), o Barão do Rio Branco, é considerado o patrono da diplomacia brasileira. Em 1902, foi convidado pelo presidente Rodrigues Alves a assumir a pasta das Relações Exteriores, na qual permaneceu até a morte, em 1912. Segundo Francisco Fernando Monteoliva Doratioto[3]: Ele possuía sólidos conhecimentos sobre os países platinos, em virtude de seus estudos e por ter presenciado a ação platina de seu pai, o Visconde do Rio Branco, expoente conservador do Brasil Império e que estivera no Prata, em missões diplomáticas. 

O Barão do Rio Branco era tributário da visão realista das relações internacionais. De fato, de acordo com Cervo e Bueno: A visão realista de Rio Branco permitia-lhe perceber, como outros de seu tempo, o peso dos Estados Unidos na nova distribuição do poder mundial e o fato de que a América Latina estava em sua capacidade de influência. [...] Ademais, Rio Branco não via a possibilidade de se formar no continente nenhum bloco de poder capaz de opor-se aos Estados Unidos, em razão da fraqueza e da falta de coesão dos países hispânicos.[4] 


Doratioto resume em poucas linhas a formulação da política externa praticada pelo Barão do Rio Branco:
Rio Branco, porém, via o Brasil em posição de destaque na América do Sul, não de modo impositivo, mas, sim, decorrente de sua própria dimensão territorial, condição econômica e situação demográfica. Antes, porém, o país devia superar aquele isolamento e outras questões limitadoras de sua ação internacional, a saber: a definição de suas fronteiras; a restituição do valor primitivo de sua ação internacional e a reconquista da credibilidade e do prestígio do país, abalados por dez anos de conflitos internos, de desmoronamento financeiro e de flutuação dos rumos seguidos. Para tanto, consolidou o redirecionamento da política externa brasileira da área de influência da Grã-Bretanha para a dos Estados Unidos e aproveitou-se das contradições entre essas duas potências, que disputavam a preponderância comercial e a hegemonia política na América do Sul. A orientação externa implementada por Paranhos Júnior correspondia aos interesses do eixo econômico e político brasileiro, centrado nos setores agroexportadores de café da região sudeste, que tinham nos Estados Unidos seu maior mercado consumidor. O fortalecimento da burocracia diplomática com Rio Branco; sua experiência profissional e prestígio pessoal, bem como a crescente complexidade técnica dos assuntos externos, fizeram com que a ele coubesse conceber e executar a política externa do país, praticamente sem ingerência dos Presidentes desse período.[5]

Segundo Cervo e Bueno, ainda, a principal obra de Rio Branco foi a solução de pendências lindeiras. De fato, em 1903, no ano seguinte após sua nomeação, o Barão teve de enfrentar a chamada “questão do Acre”, a qual foi resolvida mediante a celebração do Tratado de Petrópolis.

Resultados do Tratado de Petrópolis. A construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré 

Como resultado da assinatura do Tratado de Petrópolis, o Brasil: (a) pagou à Bolívia o valor de 2 milhões de libras esterlinas; (b) indenizou o Bolivian Syndicate[6] em 110 mil libras esterlinas pela rescisão do contrato de arrendamento celebrado em 1901 com o governo boliviano; (c) cedeu à Bolívia algumas terras no Amazonas; e (d) comprometeu-se a construir a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré para escoar a produção boliviana pelo Rio Amazonas. 

Versa o Artigo VII do Tratado de Petrópolis, in verbis: Os Estados Unidos do Brasil obrigam-se a construir em território brasileiro, por si ou por empresa particular, uma ferrovia desde o porto de Santo Antônio, no Rio Madeira, até Guajará-Mirim, no Mamoré, com um ramal que, passando por Vila Murtinho ou outro ponto próximo (Estado de Mato Grosso), chegue a Vila Bela (Bolívia), na confluência do Beni e do Mamoré. Dessa ferrovia, que o Brasil se esforçará por concluir no prazo de quatro anos, usarão ambos os países com direito às mesmas franquezas e tarifas. 



O objetivo principal da referida estrada de ferro era facilitar o escoamento de mercadorias (em particular a borracha) bolivianas e brasileiras até um local onde essas pudessem ser embarcadas para fins de exportação. No caso, o ponto de embarque era a cidade de Porto Velho, de onde as mercadorias seguiam por via fluvial, pelo Rio Madeira e em seguida pelo Rio Amazonas, até alcançarem o Atlântico. Esse trajeto evitava a penosa transposição de cachoeiras a que estava sujeito o transporte de mercadorias até então, feito de maneira precária, em pequenas embarcações indígenas. 

A construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (conhecida popularmente como Mad Maria ou Ferrovia do Diabo, em razão das milhares de mortes de trabalhadores ocorridas durante a sua construção) foi realizada entre os anos de 1907 (quando o financista-magnata estadunidense Percival Farquhar assumiu o respectivo contrato) e 1912. Em 30 de abril desse ano registrou-se a chegada da primeira composição ao município de Guajará-Mirim, conforme previsto no contrato. 

O monopólio da borracha brasileira dura até 1910, quando holandeses e ingleses iniciaram o cultivo intensivo de seringueiras no sul da Ásia (em particular, Sri Lanka, Malásia e Indonésia), e os belgas o fizeram no então Congo Belga, passando a concorrer diretamente com a borracha brasileira e oferecendo o produto a preços mais competitivos. Consequentemente, no norte do Brasil, desencadeia-se uma grave crise econômica, gerada pela falta de visão empresarial e governamental, além da ausência de alternativas para o desenvolvimento regional.[7] Desta forma, quando a Madeira-Mamoré foi concluída, em 1912, o ambiente econômico da região já era completamente desfavorável e aquilo que deveria ser uma obra grandiosa e servidora do progresso burguês, sustentado pelos capitais financeiros internacionais, tornou-se um gigantesco “elefante branco” no meio da selva. 

No início da década de 1930, o funcionamento da ferrovia foi temporariamente paralisado. Esta veio a ter sua importância renovada durante a Segunda Guerra Mundial, devido ao bloqueio ao comércio do látex malaio pelas forças japonesas de ocupação. Seu canto de cisne deu-se em 1972, quando foi definitivamente desativada. 


O legado da construção da ferrovia foi funesto. Estimam-se entre 5.000 e 6.000 as mortes de trabalhadores na ferrovia em razão de moléstias tropicais, ataques de índios e de animais selvagens, acidentes, desaparecimentos na mata, dentre outros motivos. Os trabalhadores eram das mais diversas nacionalidades: além de brasileiros, havia operários procedentes da Espanha, Barbados, Trinidad, Jamaica, Panamá e Colômbia. Foram identificadas, nos dados da Brazil Railway Co., 41 (quarenta e uma) nacionalidades diferentes nos obituários do serviço sanitário entre 1907 e 1912[8]. 

É interessante fazer um paralelo das nacionalidades que se fizeram presentes na construção da Madeira-Mamoré com a importação de mão de obra estrangeira, principalmente europeia e branca (com predomínio de italianos, alemães e espanhóis), e que se instalava majoritariamente nas regiões Sudeste e Sul do Brasil. Esta imigração europeia se encaixava no contexto da política de “branqueamento” da população, estimulada pelo governo federal para substituir a mão de obra escrava, abolida em 1888, com o respaldo das teorias racistas então em voga. 

Por outro lado, o fenômeno das diversas exposições universais que ocorreram desde meados do século XIX até o início do século XX, sempre nos principais centros europeus (Londres, Paris, Viena) e estadunidenses (Filadélfia, Chicago, Saint-Louis, San Francisco), como expressões do poderio e exibicionismo burgueses, não deixou de causar impactos no Brasil, que passou a organizar Exposições Nacionais. É nesse contexto que surgiria o projeto de construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, de acordo com Foot Hardman. 


De fato, nas palavras desse autor: Na cidade transfigurada do século XIX, as estações e linhas ferroviárias, os amplos mercados e novas avenidas, os jardins botânicos e o palácio de cristal em todas as suas réplicas foram alguns dos principais cenários dessa procura. [...] Mas a essas formas tipicamente urbanas, fundadas nos artifícios inovadores de técnicas arquitetônicas, haveria que articular os espaços sombrios ainda não completamente subjugados aos imperativos da civilização. Selvas e desertos, colônias longínquas e fronteiras por dividir: era preciso mapear a contento todas aquelas vastidões. Assim é que viajantes, exploradores, clérigos e militares vasculham o desconhecido, melhor, o semidesconhecido, deixando ali suas marcas e construindo, ao mesmo tempo, todo um arsenal de imagens da barbárie.[9]

O Tratado de Petrópolis de 1903 entre Brasil e Bolívia foi um dos atos da política externa do Barão do Rio Branco. Uma de suas consequências foi a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, para que a Bolívia pudesse escoar com mais agilidade sua produção de látex, dentro do contexto do ciclo da borracha. Com o fim do referido ciclo e a decadência dos seringais da Amazônia, a estrada de ferro perdeu a utilidade para a qual foi concebida e serve de memória histórica de uma época de ostentação burguesa e livre circulação do capital financeiro.


 Referências bibliográficas 

CERVO, Amado Luiz e BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. Brasília: Editora UnB, 2008. 

DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. A política platina do Barão do Rio Branco. Revista brasileira de política internacional, v. 43, n 2, p. 130-149. Brasília, julho/dezembro 2000. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-73292000000200006 (consulta em 04/12/2014). 

FOOT HARDMAN, Francisco. Trem-Fantasma: A ferrovia Madeira–Mamoré e a modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 (2ª edição revista e ampliada, 1ª reimpressão). 

LIMA E ALVES, Flávia. O Tratado de Petrópolis – Interiorização do conflito de fronteiras. Revista de informação legislativa, v. 42, n. 166, p. 131-149, abr./jun. 2005. Disponível em http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/495 (consulta em 04/12/2014). 

Referências literárias à Questão do Acre, ao Ciclo da Borracha na Amazônia e à Ferrovia Madeira-Mamoré: 

SOUZA, Márcio. Galvez Imperador do Acre. Rio de Janeiro: Record, 2010 (19ª edição). 

SOUZA, Márcio. Mad Maria. Rio de Janeiro: Record, 2005 (4ª edição). 

VARGAS LLOSA, Mario. El sueño del celta. Alfaguara – Santillana Ediciones Generales, 2010.

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Memória, História e Esquecimento, A Saga da Madeira-Mamoré

Em 1927, passados apenas 15 anos do assentamento dos derradeiros trilhos da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, o escritor Mário de Andrade, em excursão pelo Nordeste e Norte do Brasil, anotava em seu diário de viagem, ao percorrer aquela lendária ferrovia, até a fronteira boliviana: “O trem lá vai sacolejando. E sou mesmo eu que me sacolejo monótono nesta que é das mais terriveis estradas-de-ferro do mundo... Não... não se pode dizer que seja bonito não... Chãos péssimos de cerrado, matos fracos, alagadiços, pauis ainda negros, beirando o rio encachoeirado e apenas. 


Ninguém topa no caminho com Atenas nem com Buenos Aires. Ninguém terá pra ver, depois de se lavar no hotel, alguma catedral 
de Burgos...Mas estes trilhos foram plantados sem reis do Egito e sem escravos...

Sem escravos?...Pelo menos sem escravos matados a relho...Milhares de chineses , de portugueses, bolivianos, barbadianos, italianos, árabes, gregos, vindos a troco de libra. Tudo quanto era nariz e pele diferente andou por aqui deitando com uma febrinha na bocada-noite pra amanhecer no nunca mais. O que eu vim fazer aqui...”. Entre memória e esquecimento, o poeta modernista divagava neste diário fantástico que é o seu O turista aprendiz, inédito até o ano de 1976, quando foi editado pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP, sob a batuta infatigável de Telê Porto Ancona Lopez. E sua imaginação podia apenas vislumbrar, no desolamento daqueles cenários, a epopéia que pelo menos três dezenas de milhares de heróis anônimos tinham vivido ali, naquela Babel moderna, representando mais de 50 diferentes etnias e nacionalidades, nas quatro décadas que separam a primeira tentativa fracassada de construcão da ferrovia Madeira-Mamoré da fixação de seu último dormente, em Guajará-Mirim, a quase 400 quilometros de seu marco zero, em Porto Velho.


E Mário, como num canto elegíaco, reitera seu mote: “O que eu vim fazer aqui... Qual a razão de todos esses mortos internacionais que renascem na bulha da locomotiva e vêm com seus olhinhos de luz fraca me espiar pelas janelinhas do vagāo?.. É Guajará-Mirim, pouco mais de vinte e uma horas. Recepção. Cansaço. Não há acomodação pra todos. Alimento uma mentalidade de estouro. Falo pouco, fazendo força pra me tornar antipático, recuso coisas. Recuso dormida em casa particular, dormirei no vagão! Não tenho água pra banho. Banho de cachaça. E durmo no vagão, heroicamente, sem medo das maleitas nem dos mortos, com um gosto raivoso de fraternidade nas mãos”.



A história da Madeira-Mamoré é a de uma sucessão de ciclos descontínuos de vida e morte, prosperidade e miséria, lembranças e luta. Encravada na selva e no cerrado do extremo noroeste brasileiro, sua construção foi não só determinada por razões econômicas, vinculadas à expansão do capitalismo financeiro internacional e ao novo mapa que o imperialismo foi desenhando nos vários continentes, desde a “década de ouro” do capital (1870) até a Primeira Guerra Mundial. E nesse movimento amplo de interesses e empreendimentos, formou-se uma força de trabalho igualmente internacionalizada, constituída de massas miseráveis e semi-escravizadas latino-americanas, africanas, asiáticas e europeias, que encenaram uma nova diáspora dos tempos modernos, sem pátria nem leis, em deslocamento perene, movidas à custa de Chuva, vapor e velocidade, para retomarmos as imagens que serviram de elementos para a composição da magistral tela homônima do pintor inglês Turner, que antecipava visionariamente o cenário desse drama histórico ainda em 1844.



Se hoje a rede virtual eletrônica simboliza e realiza muito do poder do capital globalizado, podemos considerar, analogamente, a imensa rede planetária de caminhos de ferro, que se formou a partir de 1850,bem como o mapa das rotas de portos e navios a vapor de grande calado como a arquitetura mais realista do poderio e alcance das tenazes do capital, até pelo menos 1930.O historiador  Eric J. Hobsbawm, entre outros, ressaltou com muito brilho esse período de guerras e batalhas dos trilhos, mostrando a íntima associação entre relações capitalistas e expansão ferroviária. Júlio Verne e sua encantadora novela A volta ao mundo em oitenta dias que nos digam...



Mas, além desse peso evidente dos fatores materiais, temos de considerar a atuação forte da ideologia do progresso, da modernização a ferro e fogo que acompanha os passos da civilização técnica ocidental, a partir da expansão mercantilista europeia , desde o século XV, mas conhecendo sua maior aceleração nos séculos XIX e XX. Trens, navios, automóveis, aviões, foguetes, computadores: tudo deve correr para a frente, em ritmo frenético, para impor a dominação do Homo sapiens (será que é sapiente mesmo?) sobre as forças naturais, muito além dos tempos de metabolização biológica ou de adaptação ecológica. Este enlouquecimento de projetos faraônicos modernos a todo vapor acabou por fazer da lentidão, no dizer de escritores como Umberto Eco ou Hans-Magnus Enzensberg , um dos bens mais escassos e valiosos para a humanidade no século XXI. E normalmente, como sói acontecer, essa "corrida ao ouro" (em nosso caso o mitológico "ouro negro" do boom da borracha), quando chega ao finda linha, deixa para trás apenas um rastro de ruínas e ilusões.


Além disso, na saga da Madeira-Mamoré, como em outras ferrovias mundo afora, a questão política essencial, a da soberania dos estados nacionais sobre determinados territórios, esteve presente de modo inegável. Aqui também combinaram-se acordos diplomáticos, conflitos militares (a Guerra do Acre é seu capítulo mais notório), pressões de grupos organizados sobre governos e parlamentos, enfim, os ingredientes que deveriam intervir na luta pela demarcação das fronteiras territoriais e estabelecimento de zonas francas do capital, dentro do já velho jogo entre imperialismos e nacionalismos, cuja balança, mesmo oscilante, sempre pendeu para o lado mais forte.



O projeto que surge como ancestral mais impressionante e famoso da Madeira-Mamoré foi sem dúvida o Forte Príncipe da Beira, construído durante o período pombalino, no século XVIII, na região do rio Guaporé, para demarcar os limites entre domínios portugueses e hispânicos, maior fortaleza militar ultramarina erguida por Lisboa, e que logo adiante, quase escondido  pela cobertura vegetal da floresta, ia se corroendo como grandes blocos de pedras, meras ruínas na selva de um colonialismo decadente. Já a descendente em linhagem direta da Mad Maria, nos anos 70 do século XX, em plena ditadura militar, foi a rodovia Transamazônica, em seus 4 mil quilômetros com início no porto de Cabedelo, Paraíba, e término no Acre. cerca de uma década depois de concluída, a natureza amazônica envolvia seu leito em tentáculos aquáticos e vegetais incontornáveis, desde o território do Maranhão. A estrada era engolida pela selva.



Lembrar hoje da Madeira-Mamoré não deve se reduzir a um mero exercício de nostalgia. A memória pode e deve servir sempre como iluminação da cena presente, como instrumento de resistência e luta, como estímulo para as gerações futuras. 

Primeiro lembremos de seus grandes narradores. As tragédias de Canudos, Contestado e Madeira-Mamoré se equivalem, em grandeza épica, em drama humano, em violência concentrada, em desdobramentos históricos. Mas, se terá faltado a Contestado e à Madeira-Mamoré um narrador à altura poética de Euclides da Cunha em Os sertões, não podemos ignorar esse imenso narrador coletivo da memória popular. Por outro lado, para a ferrovia da selva, temos de registrar o incansável trabalho de Sísifo de engenheiros-historiadores, que produ-ziram narrativas exemplares, hoje clássicas, como as de Neville Craig, Estrada de ferro Madeira-Mamoré: história trágica de uma expedicāo  (1907) e de Manoel Rodrigues Ferreira, A ferrovia do diabo: história de uma estrada de ferro na Amazônia(1960).E ,mais  modernamente, um romance como o Mad Maria, de Márcio Souza (1980), repôs a história para o público contemporâneo. Mas o cronista maior daquele palco e drama, a meu ver, continua sendo o fotógrafo nova-iorquino Dana Merrill que, nas cerca de 2 mil chapas que gravou do trabalho de construção da ferrovia, deixou, nas tão-somente pouco mais de 200 que chegaram até nós, signos visuais únicos e os mais realistas que se puderam forjar, daquela história, que com suas imagens deixava definitivamente de ser apenas técnica, contábil ou empresarial para se converter em história social do trabalho, em história humana.

Aleks Palitot

Historiador Mestre



quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

A Viagem no Tempo, Madeira- Mamoré

 

A saga de Dana Merrill, proporcionou a impressionante documentação fotográfica do final da construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, nos possibilitando viajar no tempo e espaço para o passado, e principio dos primeiros passos de ocupação da futura cidade de Porto Velho, capital do Estado de Rondônia.


    O nova-iorquino Dana Merrill desembarcou, em Porto Velho, com seu equipamento para registrar tudo o que se passava naquele imenso canteiro de obras, em meio à selva, suas surpresas e suas armadilhas para homens acostumados a viver em ambientes urbanos. O ano era 1909, quase às vésperas da sucessivamente adiada inauguração da ferrovia que abriu um sinuoso caminho na Amazônia. O fotógrafo, contratado pelos engenheiros responsáveis pela construção, vinha com a missão de registrar a colocação de trilhos, vigas e pontes. Permaneceu na área, atento a tudo que pudesse registrar com suas lentes, até 1912, quando finalmente as locomotivas começaram a operar sistematicamente. Deu por concluído seu trabalho e retornou aos Estados Unidos, sem deixar rastros de sua trilha posterior.


           Tarefas de longa duração e grande distância da base não eram incomuns nessa época de desenvolvimento da sociedade e da própria fotografia, cada vez mais ligada à idéia de modernidade que acompanhou seu nascimento. A transformação e o crescimento das cidades, tal como o progresso ligado à tecnologia, sempre foram temas caros à fotografia. Nada mais moderno que abrir caminhos para a passagem dos trilhos que descortinavam novos horizontes. No Brasil mesmo, fotógrafos como Marc Ferrez (1843-1923),Augusto Malta(1864-1957), Guilherme Gaensly (1843-1928) acompanharam a abertura de ruas e a instalação dos serviços de bondes, a convite das prefeituras do Rio de Janeiro e de São Paulo.

      Fotografias que, na ocasião, nada tinham de pessoal ou artístico, senão um objetivo documental, captavam cenários que fugiam dos registros dos grandes paisagistas do século XIX: eram encomendas que com o passar dos anos se transformaram na nossa idéia de cidade, elas mesmas partes integrantes da própria história. Não era diferente nos Estados Unidos, onde novos movimentos das vanguardas fotográficas - como o Photosecession, criado por Alfred Stieglitz, em 1902 em Nova York, por exemplo-ofereciam matéria de debate para o tema da contemplação da imagem e transferiam seu interesse para a funcionalidade da imagem e a experimentação da fotografia, com os olhos voltados para a modernização do espaço urbano.




    Não é de espantar, portanto, nem constitui novidade em si, o fato de o proprietário do conglomerado Madeira-Mamoré Railway, o engenheiro americano Percival Farquhar, ter contratado um fotógrafo. O interessante é o itinerário que essas fotos percorreram para chegar até a atualidade. E como elas chegaram. Pouco se conhece da vida de Dana Merrill. Nem mesmo sua data de nascimento ou de morte. Mas sabe-se que era funcionário da prefeitura de Nova York e, portanto, talvez estivesse familiarizado com o trabalho de registro. Ao deparar com o cenário amazônico, ele prontamente deve ter se conscientizado do que tinha pela frente: ajustar as lentes apenas para os aspectos da engenharia seria muito pouco frente ao mundo que se descortinava diante de seus olhos atentos. Passou a registrar, então, o cotidiano e seu entorno-o hospital, a lavanderia, a lida dos homens em campo, os desafios que enfrentavam frente à natureza exuberante.


      A partir desse interesse acurado, Merrill construiu um valioso documento visual, em que ao mesmo tempo capta e enaltece o progresso e o lado humano da história. Parte do acervo, precisamente 189 negativos, está preservada no Museu Paulista, desde julho de 1999.Fotografar, naquele tempo, não era fácil. Havia algumas limitações tecnológicas. O equipamento que ele usava era semelhante ao normalmente usado por seus colegas de profissão, informou o fotógrafo e arquiteto Pedro Ribeiro, no catálogo da exposição Ferrovia Madeira-Mamoré-Trilhos e Sonhos, realizada no Rio de Janeiro em 2000. Para gravar as imagens, em formato 13 x18, uItilizavam-se chapas de vidro. Merrill trouxe também film pack, placas de acetato-mais flexíveis que o vidro e menos frágeis-criadas nos EUA em 1903. Essa opção permitia ao fotógrafo uma considerável economia de peso no equipa- mento e mais agilidade na troca de chapas. Contudo, a câmera usada continuava sendo aquela convencional, mais apropriada para a execucão das documentacões tradicionais, tomadas a média distância, rigorosamente enquadradas e privilegiando a pose, que de certa forma era induzida pelo compulsório tripé.


      As limitações técnicas não impediram o profissional de procurar novos ângulos e perspectivas. O que temos em acervo é apenas uma pequena parte da produção do Dana Merrill. O conjunto de fotos, porém, evidencia como ele foi muito além da missão para a qual o contrataram, no confronto com a floresta. Ficou imbuído do espírito das grandes expedições do século XIX. Sabemos que ele fotografou a flora, a fauna, os índios. Pena que esse material se perdeu.
Calcula-se que, nos três anos de sua permanência no Brasil, Dana Merrill tenha feito mais de 2 mil negativos. Durante muito tempo nada se soube dessa documentação, até que, em 1956, uma caixa com o material chegou as mãos do jornalista e pesquisador Manuel Rodrigues Ferreira. Em depoimento ao museu, ele revelou que o pacote lhe foi entregue pelo "repórter fotográfico Ari André, que por sua vez o recebeu do filho de um dos engenheiros que havia trabalhado na construção da estrada: Rodolfo Kesserling". Ferreira se interessou pela documentação da estrada de ferro e devolveu o restante, precisamente a documentação da selva. Ele apenas separou o material da ferrovia, porque estava trabalhando justo nesse tema. Das quase 2 mil fotos, Manuel Ferreira ficou com 189 apenas:40 negativos de vidro e 149 de acetato. Esse material lhe permitiu produzir mais de uma dezena de reportagens ilustradas com imagens desconhecidas na época.

        Em 1959, Manuel Ferreira publicou o livro que se tornaria um clássico dessa história e um dos mais completos: A ferrovia do diabo. As imagens, ele as havia identificado, mas faltava saber o nome do fotógrafo. Até então ninguém sabia quem tinha sido autor do projeto. Três anos depois da publicação de seu livro, Manuel Rodrigues Ferreira tomou conhecimento de um livro escrito por Frank Kravign (The jungle route). No livro mais imagens inéditas da construção da Madeira-Mamoré, inclusive do fotógrafo Dana Merrill. Assim, Manoel pôde, finalmente, identificar a autoria do conjunto de negativos em seu poder.


      Durante mais de 40 anos, Manuel Rodrigues Ferreira preservou e guardou esse material. Generoso, compreendeu que parte dessa história deveria ficar sob os cuidados de um órgão público. Durante anos, tentou inutilmente com a iniciativa privada conseguir patrocínio ou ajuda para cuidar do material, chegou até a oferecer na década de 90 para o Governo do Estado de Rondônia. Até que, no final dos anos 1990, os 149 negativos foram comprados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social(BNDES) e doados ao Museu Paulista da USP, passando a integrar uma das mais importantes coleções de fotografia brasileira: A coleção não chega inédita ao museu. Muitas dessas imagens já foram publicadas no mundo todo. É importante a temática, seu olhar antropológico, o olhar do outro. Mas ele não foge muito do padrão da época.

 É interessante lembrar que no Instituto Manguinhos do Rio de Janeiro também foram encontradas fotos dessa mesma coleçāo. Provavelmente fotos que ele deu de presente a um dos médicos que visitou a região, na época considerada bastante insalubre. Houve uma expedição do Oswaldo Cruz e de outros médicos.


      Inéditas ou não, não importa. É a única documentação que temos daquele período. E referência para qualquer estudioso. O departamento de pesquisa da TV Globo, por exemplo, foi ao Museu Paulista pesquisar as imagens para produzir os cenários de sua minissérie Mad Maria, gravada em Rondônia, as margens do Rio Madeira e do trajeto que resta da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Aos poucos vamos recuperando nossa história, mesmo que seja por vias estranhas.  
 Autor:
Aleks Palitot
Historiador Mestre

terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Do Poderoso Rio Madeira, ao Novo Mundo na Amazônia

 Transpor as cachoeiras do rio Madeira sempre foi uma árdua tarefa. No século XVII, o bandeirante Antônio Raposo Tavares o Anhangüera, que saíra da Vila de São Paulo em missão de reconhecimento e ampliação do território da colônia portuguesa desceu essas turbulentas águas, no final de 1650. A partir de sua experiência, outros desbravadores seguiram o mesmo rumo. Com a descoberta de ouro nos rios Cuiabá e Coxipó, em 1719, houve uma verdadeira corrida à área. Mas foi outro bandeirante, Francisco de Melo Palheta, que a partir de Santa Maria de Belém no Grão-Pará, realizou em 1722 a façanha de subir pela primeira vez as corredeiras e quedas-d'água com embarcações maiores do que as canoas de árvores antes usadas para exploração da área.

Com o trajeto conhecido pelos marinheiros e práticos da colônia, tanto na descida como na subida do principal afluente da margem direita do rio Amazonas, os comerciantes passaram a levar suas mercadorias do Mato Grosso para o Grão-Pará e vice-versa. Era uma viagem penosa, que demandava de três a quatro meses.

Em 1781,a Coroa despachou para lá a Comissão Demarcadora dos Limites da América Portuguesa, chefiada pelo engenheiro Francisco José de Lacerda e Almeida. Sua principal missão era fazer cumprir as diretrizes do Tratado de Madri, assinado em 1750, que definia as fronteiras entre os reinos de Portugal e Espanha no "Novo Mundo". O documento inspirou a urgência de demarcar oficialmente todos os rincões da colônia. Mais adiante, em 1788, a Coroa enviou outro emissário: o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, com a responsabilidade de pesquisar e estudar a flora, fauna e demais características dos rios Madeira e Guaporé. Durante a permanência de um ano, sua expedição foi praticamente aniquilada por doenças tropicais.


Pesquisas do historiador Manoel Rodrigues Ferreira que constam em seu livro A Ferrovia do Diabo mostram que vários planos foram delineados para facilitar o crescente intercâmbio comercial entre as minas de ouro do Mato Grosso e de Belém. Em 1797,o governador do Pará, D.Francisco de Sousa Coutinho, a mando da rainha D. Maria I, desenvolveu um serviço público de transporte para que os comerciantes pudessem transpor as cachoeiras. A idéia era simples: as embarcações seriam assistidas por tropas militares, marinheiros e funcionários do Mato Grosso e do Grão-Pará. Era uma maneira de reduzir os custos e os riscos dos senhores do ouro. A proposta não vingou inteiramente, mas foram criados destacamentos militares perto das principais cachoeiras, com o objetivo de auxílio.

No século XIX, com a transferência da Corte Portuguesa de Lisboa para o Rio de Janeiro em 1808, após a invasão de Portugal pelas tropas do imperador Napoleão Bonaparte, seria outro o cenário dos interesses econômicos e territoriais do Brasil colonial. A fronteira oeste da floresta amazônica voltaria a receber atenção só depois da independência do Brasil, em 1822, e da Bolívia, em 1825.


Aleks Palitot

Historiador Mestre