segunda-feira, 1 de maio de 2023

120 anos do Tratado de Petrópolis

O Tratado de Petrópolis (cujo nome completo era Tratado de Petrópolis. Permuta de territórios e outras compensações entre o Brasil e a Bolívia) foi assinado em 17 de novembro de 1903 após um longo histórico de tensões entre brasileiros e bolivianos no atual território, bem como uma série de negociações diplomáticas entre ambos os estados contratantes. 

Sob o ponto de vista jurídico, estava em vigor, até 1903, o Tratado de Ayacucho de 1867, de acordo com o qual o Brasil reconhecia o Acre como território boliviano. 

Sob o ponto de vista econômico, o Brasil estava passando, em 1903, pelo chamado ciclo da borracha (1879 1912)[1], período em que a exploração do látex, matéria-prima para a produção de borracha, aportou à região norte do Brasil uma importância econômica e social até então desconhecida naqueles confins. Conforme indicado por Flávia Lima e Alves: De fato, a produção industrial da borracha — viabilizada pelo processo de vulcanização inventado por Charles Goodyear em 1839 — deu origem ao advento dos pneumáticos, item fundamental da vigorosa e ascendente indústria automobilística.[2] 


Vale a pena lembrar que, no período entre 1870 (com a unificação da Alemanha) e 1914 (início da I Guerra Mundial), o ambiente econômico em que o mundo vivia era de extremo liberalismo, com pouquíssima ou nenhuma intervenção estatal, graças à adoção das teorias do economista David Ricardo. Há quem chame esse período de “primeira globalização”. A Grã-Bretanha e a Alemanha eram grandes concorrentes por matérias-primas sob o contexto da Segunda Revolução Industrial, competindo também por colônias, um dos motivos que levou à eclosão de Guerra de 1914-1918. 

A grande demanda pelo então chamado ouro branco levou grandes levas de brasileiros (especialmente nordestinos e, ainda mais especificamente cearenses, em razão das dramáticas secas que atingiam repetidamente a região) à selva amazônica, pela bacia do Rio Acre, com o propósito de aí realizar explorações extrativistas. 

Uma série de conflitos entre os imigrantes brasileiros e os bolivianos que também acudiram à região levou a uma forte tensão entre a Bolívia e o Brasil, tendo o chanceler brasileiro na ocasião, o Barão do Rio Branco, solucionado a questão mediante a assinatura do Tratado de Petrópolis de 1903. 


A atuação do Barão do Rio Branco


José Maria da Silva Paranhos Júnior (Rio de Janeiro, 1845 – 1912), o Barão do Rio Branco, é considerado o patrono da diplomacia brasileira. Em 1902, foi convidado pelo presidente Rodrigues Alves a assumir a pasta das Relações Exteriores, na qual permaneceu até a morte, em 1912. Segundo Francisco Fernando Monteoliva Doratioto[3]: Ele possuía sólidos conhecimentos sobre os países platinos, em virtude de seus estudos e por ter presenciado a ação platina de seu pai, o Visconde do Rio Branco, expoente conservador do Brasil Império e que estivera no Prata, em missões diplomáticas. 

O Barão do Rio Branco era tributário da visão realista das relações internacionais. De fato, de acordo com Cervo e Bueno: A visão realista de Rio Branco permitia-lhe perceber, como outros de seu tempo, o peso dos Estados Unidos na nova distribuição do poder mundial e o fato de que a América Latina estava em sua capacidade de influência. [...] Ademais, Rio Branco não via a possibilidade de se formar no continente nenhum bloco de poder capaz de opor-se aos Estados Unidos, em razão da fraqueza e da falta de coesão dos países hispânicos.[4] 


Doratioto resume em poucas linhas a formulação da política externa praticada pelo Barão do Rio Branco:
Rio Branco, porém, via o Brasil em posição de destaque na América do Sul, não de modo impositivo, mas, sim, decorrente de sua própria dimensão territorial, condição econômica e situação demográfica. Antes, porém, o país devia superar aquele isolamento e outras questões limitadoras de sua ação internacional, a saber: a definição de suas fronteiras; a restituição do valor primitivo de sua ação internacional e a reconquista da credibilidade e do prestígio do país, abalados por dez anos de conflitos internos, de desmoronamento financeiro e de flutuação dos rumos seguidos. Para tanto, consolidou o redirecionamento da política externa brasileira da área de influência da Grã-Bretanha para a dos Estados Unidos e aproveitou-se das contradições entre essas duas potências, que disputavam a preponderância comercial e a hegemonia política na América do Sul. A orientação externa implementada por Paranhos Júnior correspondia aos interesses do eixo econômico e político brasileiro, centrado nos setores agroexportadores de café da região sudeste, que tinham nos Estados Unidos seu maior mercado consumidor. O fortalecimento da burocracia diplomática com Rio Branco; sua experiência profissional e prestígio pessoal, bem como a crescente complexidade técnica dos assuntos externos, fizeram com que a ele coubesse conceber e executar a política externa do país, praticamente sem ingerência dos Presidentes desse período.[5]

Segundo Cervo e Bueno, ainda, a principal obra de Rio Branco foi a solução de pendências lindeiras. De fato, em 1903, no ano seguinte após sua nomeação, o Barão teve de enfrentar a chamada “questão do Acre”, a qual foi resolvida mediante a celebração do Tratado de Petrópolis.

Resultados do Tratado de Petrópolis. A construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré 

Como resultado da assinatura do Tratado de Petrópolis, o Brasil: (a) pagou à Bolívia o valor de 2 milhões de libras esterlinas; (b) indenizou o Bolivian Syndicate[6] em 110 mil libras esterlinas pela rescisão do contrato de arrendamento celebrado em 1901 com o governo boliviano; (c) cedeu à Bolívia algumas terras no Amazonas; e (d) comprometeu-se a construir a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré para escoar a produção boliviana pelo Rio Amazonas. 

Versa o Artigo VII do Tratado de Petrópolis, in verbis: Os Estados Unidos do Brasil obrigam-se a construir em território brasileiro, por si ou por empresa particular, uma ferrovia desde o porto de Santo Antônio, no Rio Madeira, até Guajará-Mirim, no Mamoré, com um ramal que, passando por Vila Murtinho ou outro ponto próximo (Estado de Mato Grosso), chegue a Vila Bela (Bolívia), na confluência do Beni e do Mamoré. Dessa ferrovia, que o Brasil se esforçará por concluir no prazo de quatro anos, usarão ambos os países com direito às mesmas franquezas e tarifas. 



O objetivo principal da referida estrada de ferro era facilitar o escoamento de mercadorias (em particular a borracha) bolivianas e brasileiras até um local onde essas pudessem ser embarcadas para fins de exportação. No caso, o ponto de embarque era a cidade de Porto Velho, de onde as mercadorias seguiam por via fluvial, pelo Rio Madeira e em seguida pelo Rio Amazonas, até alcançarem o Atlântico. Esse trajeto evitava a penosa transposição de cachoeiras a que estava sujeito o transporte de mercadorias até então, feito de maneira precária, em pequenas embarcações indígenas. 

A construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (conhecida popularmente como Mad Maria ou Ferrovia do Diabo, em razão das milhares de mortes de trabalhadores ocorridas durante a sua construção) foi realizada entre os anos de 1907 (quando o financista-magnata estadunidense Percival Farquhar assumiu o respectivo contrato) e 1912. Em 30 de abril desse ano registrou-se a chegada da primeira composição ao município de Guajará-Mirim, conforme previsto no contrato. 

O monopólio da borracha brasileira dura até 1910, quando holandeses e ingleses iniciaram o cultivo intensivo de seringueiras no sul da Ásia (em particular, Sri Lanka, Malásia e Indonésia), e os belgas o fizeram no então Congo Belga, passando a concorrer diretamente com a borracha brasileira e oferecendo o produto a preços mais competitivos. Consequentemente, no norte do Brasil, desencadeia-se uma grave crise econômica, gerada pela falta de visão empresarial e governamental, além da ausência de alternativas para o desenvolvimento regional.[7] Desta forma, quando a Madeira-Mamoré foi concluída, em 1912, o ambiente econômico da região já era completamente desfavorável e aquilo que deveria ser uma obra grandiosa e servidora do progresso burguês, sustentado pelos capitais financeiros internacionais, tornou-se um gigantesco “elefante branco” no meio da selva. 

No início da década de 1930, o funcionamento da ferrovia foi temporariamente paralisado. Esta veio a ter sua importância renovada durante a Segunda Guerra Mundial, devido ao bloqueio ao comércio do látex malaio pelas forças japonesas de ocupação. Seu canto de cisne deu-se em 1972, quando foi definitivamente desativada. 


O legado da construção da ferrovia foi funesto. Estimam-se entre 5.000 e 6.000 as mortes de trabalhadores na ferrovia em razão de moléstias tropicais, ataques de índios e de animais selvagens, acidentes, desaparecimentos na mata, dentre outros motivos. Os trabalhadores eram das mais diversas nacionalidades: além de brasileiros, havia operários procedentes da Espanha, Barbados, Trinidad, Jamaica, Panamá e Colômbia. Foram identificadas, nos dados da Brazil Railway Co., 41 (quarenta e uma) nacionalidades diferentes nos obituários do serviço sanitário entre 1907 e 1912[8]. 

É interessante fazer um paralelo das nacionalidades que se fizeram presentes na construção da Madeira-Mamoré com a importação de mão de obra estrangeira, principalmente europeia e branca (com predomínio de italianos, alemães e espanhóis), e que se instalava majoritariamente nas regiões Sudeste e Sul do Brasil. Esta imigração europeia se encaixava no contexto da política de “branqueamento” da população, estimulada pelo governo federal para substituir a mão de obra escrava, abolida em 1888, com o respaldo das teorias racistas então em voga. 

Por outro lado, o fenômeno das diversas exposições universais que ocorreram desde meados do século XIX até o início do século XX, sempre nos principais centros europeus (Londres, Paris, Viena) e estadunidenses (Filadélfia, Chicago, Saint-Louis, San Francisco), como expressões do poderio e exibicionismo burgueses, não deixou de causar impactos no Brasil, que passou a organizar Exposições Nacionais. É nesse contexto que surgiria o projeto de construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, de acordo com Foot Hardman. 


De fato, nas palavras desse autor: Na cidade transfigurada do século XIX, as estações e linhas ferroviárias, os amplos mercados e novas avenidas, os jardins botânicos e o palácio de cristal em todas as suas réplicas foram alguns dos principais cenários dessa procura. [...] Mas a essas formas tipicamente urbanas, fundadas nos artifícios inovadores de técnicas arquitetônicas, haveria que articular os espaços sombrios ainda não completamente subjugados aos imperativos da civilização. Selvas e desertos, colônias longínquas e fronteiras por dividir: era preciso mapear a contento todas aquelas vastidões. Assim é que viajantes, exploradores, clérigos e militares vasculham o desconhecido, melhor, o semidesconhecido, deixando ali suas marcas e construindo, ao mesmo tempo, todo um arsenal de imagens da barbárie.[9]

O Tratado de Petrópolis de 1903 entre Brasil e Bolívia foi um dos atos da política externa do Barão do Rio Branco. Uma de suas consequências foi a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, para que a Bolívia pudesse escoar com mais agilidade sua produção de látex, dentro do contexto do ciclo da borracha. Com o fim do referido ciclo e a decadência dos seringais da Amazônia, a estrada de ferro perdeu a utilidade para a qual foi concebida e serve de memória histórica de uma época de ostentação burguesa e livre circulação do capital financeiro.


 Referências bibliográficas 

CERVO, Amado Luiz e BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. Brasília: Editora UnB, 2008. 

DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. A política platina do Barão do Rio Branco. Revista brasileira de política internacional, v. 43, n 2, p. 130-149. Brasília, julho/dezembro 2000. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-73292000000200006 (consulta em 04/12/2014). 

FOOT HARDMAN, Francisco. Trem-Fantasma: A ferrovia Madeira–Mamoré e a modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 (2ª edição revista e ampliada, 1ª reimpressão). 

LIMA E ALVES, Flávia. O Tratado de Petrópolis – Interiorização do conflito de fronteiras. Revista de informação legislativa, v. 42, n. 166, p. 131-149, abr./jun. 2005. Disponível em http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/495 (consulta em 04/12/2014). 

Referências literárias à Questão do Acre, ao Ciclo da Borracha na Amazônia e à Ferrovia Madeira-Mamoré: 

SOUZA, Márcio. Galvez Imperador do Acre. Rio de Janeiro: Record, 2010 (19ª edição). 

SOUZA, Márcio. Mad Maria. Rio de Janeiro: Record, 2005 (4ª edição). 

VARGAS LLOSA, Mario. El sueño del celta. Alfaguara – Santillana Ediciones Generales, 2010.