sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

A Borracha na Amazônia, faces de sua história.

 


A narrativa clássica do auge da exploração de borracha na Amazônia evoca uma “história de glória e cobiça: novos-ricos explorando pobres seringueiros e acendendo charutos em notas de cem mil-réis; dirigentes políticos, deslumbrados pelo aumento fantástico da receita pública, esbanjando dinheiro em projetos suntuosos e irracionais, como o Teatro de Ópera de Manaus e a estrada de ferro Madeira Mamoré. Os relatos melodramáticos sobre a ascensão e queda do comércio do látex permaneceram no imaginário popular em parte porque fixaram, de maneira viva, alguns aspectos da súbita prosperidade econômica da região. Por outro lado, reforçaram a imagem estereotipada da Amazônia como um lugar não civilizado que, exceto por breves intervalos de euforia econômica movida por forças externas, só existiu “fora da história”. Gostaríamos de expor aqui uma versão diferente, que se opõe aos estereótipos conhecidos. Contestaremos três das hipóteses mais difundidas sobre o boom. A primeira é que as elites regionais aderiram cegamente e em massa ao negócio da borracha, desprezando projetos de longo prazo para o desenvolvimento da região. A segunda é que os seringueiros foram vítimas indefesas dos barões feudais da borracha. A terceira hipótese a ser revista é que a economia amazônica só cobrou no momento em que o centro da produção da borracha se transferiu para a Ásia. Uma história alternativa do ciclo da borracha pode não ser tão sensacional quanto os relatos que apareceram nos escritos de viagem, novelas e filmes. Mas decerto o aproxima mais da verdade, tornando os seres humanos que dele participaram mais interessantes como agentes históricos do que como meras vítimas de forcas globais.

Em 1855, um importante proprietário de terras no município de Melgaço quis saber de um jornal de Belém se tinham fundamento os rumores, logo revelados falsos, sobre um suposto decreto que proibia a extração de borracha no Pará. Exatamente um ano antes, o presidente (como eram chamados os governadores) do Pará condenara com veemência “o emprego quase exclusivo dos braços na extração e fabrico da borracha, a ponto de ser preciso atualmente receber de outras Províncias gêneros de primeira necessidade". E concluía: “Isto constitui certamente um mal”. Domingos Soares Ferreira Penna, funcionário do governo proveniente de uma família de criadores de gado, escreveu um relatório contundente a respeito da economia da borracha depois de visitar distritos de extração, em 1864. Ele denunciou aquela “abominável indústria” e concluiu que “a extração da borracha não é fatal apenas para o seringueiro; seus efeitos perniciosos (...) recaem sobre outros ramos de indústria, sobre a riqueza e civilização no interior da província".


Como podemos explicar tais reações desanimadoras em face do crescimento das exportações de borracha bruta? Uma explicação é a crença generalizada de que as atividades extrativas, tal como a coleta da borracha, não podiam constituir a base de uma ordem social e econômica estável. As chamadas classes conservadoras valorizavam empresas agrícolas, assentamentos permanentes de colonos, fontes seguras de riqueza, e um processo "de desenvolvimento social". Dificilmente o comércio da borracha seria compatível com qualquer um desses objetivos. “Estradas” da Hevea brasiliensis se achavam espalhadas pela mata, crescendo fora de qualquer padrão, o que obrigava os seringueiros a viver em assentamentos dispersos e isolados. Durante a estação da sangria, o principal contato com o “mundo exterior” era o “aviador”, comerciante local que trocava víveres e outras mercadorias por bolas de borracha diligentemente elaboradas pelos seringueiros. E, uma vez que as árvores de um determinado lugar tinham sido totalmente "sangradas", o seringueiro se mudava para uma nova zona, nada deixando para trás que demonstrasse sua presença na área, a não ser algumas exauridas seringueiras. Tal empreendimento predatório, entendiam os críticos, dificilmente poderia servir de base para uma sociedade mais moderna e civilizada na Amazônia.

Muitos acreditavam que “os produtos do solo são as únicas fontes inexauríveis de riqueza", e temiam que a província estivesse comprometendo seu futuro bem-estar em troca de alguns anos de fartura. Ferreira Penna sonhou com uma região de prósperas colônias agrícolas que promovessem a educação e a estabilidade familiar na Amazônia.  Ao contrário, a extração da borracha deixava o seringueiro, na maior parte do ano, numa remota choupana, onde ele ficava fora do alcance das autoridades civis. Ferreira Penna escreveu em 1864, muito antes que o comércio da borracha tivesse atingido seu apogeu, mas ecos de sua desaprovação podem ser percebidos mesmo nos anos do boom. Em 1887, o barão de Marajó defendeu planos de colonização argumentando que “um agricultor será mais útil para nós do que dez ou vinte seringueiros". No mesmo sentido, o fundador da Sociedade Paraense de Imigração sustentou que “a indústria extrativa, que serve apenas para avolumar os cofres públicos, não dá, nem pode dar à população amazônica a felicidade a que tem jus'. E os primeiros governadores republicanos do Pará liberaram generosas verbas para assentamentos agrícolas. A maior parte destes projetos foi mal concebida e infrutífera, mas eles apontam que as autoridades na Amazônia entenderam a natureza efêmera do ciclo da borracha. Precisamente em 1909, no próprio ápice do boom, o secretário de Finanças do Pará inseriu a seguinte observação em seu relatório anual: “A nossa situação econômica é mais precária do que parece, o nosso progresso mais aparente do que real. Somos um povo pobre, a fortuna particular é instável... Sofremos o mal dos países que vivem das indústrias extrativas com a agravante de só termos um produto de valor”. Outra fonte de preocupação para a elite quanto ao
comércio da borracha, especialmente nas primeiras décadas, era a considerável “independência” que força de trabalho de macacos treinados. Essas observações, além de mostrar o lado racista dos investidores estrangeiros, revelam sua profunda frustração em  eventos encontrar uma mão-de-obra desinteressada em utilizar a borracha em métodos modernos de negócios”, a ainda por esses os caboclos e comunidades tradicionais eram movidos pela preguiça. 


Em 1908 e 1910, atingindo seu preço máximo - mais do que seis dólares por quilo - em abril do último ano. Dai por diante o mercado entrou em queda livre, caindo para US$ 2,50 o quilo no final de 1911, e continuando sua descida ao longo da década. Para certos segmentos da comunidade da Amazônia, o colapso dos preços da borracha foi nada menos que catastrófico. Os estabelecimentos comerciais de aviamento, cujos bens consistiam em sua maior parte de “débitos” feitos pelos intermediários, de repente perceberam que suas propriedades rurais não tinham mais nenhum valor. As propriedades urbanas, vistas como um dos investimentos mais seguros, tiveram de ser vendidas por uma fração de seu preço anterior, e avisos em jornais da região regularmente anunciavam leilões de jóias e mobiliário. No setor público, as autoridades estaduais e municipais de repente se encontraram reduzidas a estado de pobreza e forçadas a mendigar ajuda ao governo federal. Para esses membros da elite, o colapso do mercado da borracha significou realmente o fim de um estilo de vida.
Entretanto, as estatísticas também indicam que, para outros moradores da Amazônia, o impacto do colapso não significou uma ruptura dramática e nem foi assim tão desastroso. Enquanto o valor das exportações da borracha caiu drasticamente depois de 1910, a produção aumentou por muitos anos após o colapso, e o total praticamente permaneceu igual até a década de 1920. Por uma década, os seringueiros não alteraram significativamente seus índices de produção, apesar de o mercado da borracha ter entrado em longo declínio. Pode-se concluir que, nos primeiros dois anos que se seguem ao colapso, seringueiros e negociantes mantiveram ou aumentaram o nível de produção e troca, na esperança de que o mercado pudesse recuperar logo sua antiga capacidade de flutuação. O que causa maior perplexidade é o alto índice de produção após 1912, apesar dos sinais de que o declínio era permanente.

Celso Furtado alega que, depois do colapso, produtores rurais na Amazônia “voltaram-se para a mais primitiva forma de economia de subsistência". Esta conclusão parece claramente falsa. Os seringueiros continuaram a produzir  borracha para o mercado, e o fizeram apesar da abrupta queda dos preços. O que, então, explica a aparente imunidade da economia extrativa às leis de oferta e habitantes da Amazônia provavelmente permaneceu enredada com um comerciante local, envolvida numa relação ambivalente de coerção e anuência que os levava a continuar cortando seringueiras. Em segundo lugar, eles puderam aguentar o drástico declínio do valor do látex que retiravam, dedicando uma parte maior de seu tempo “livre” a atividades de subsistência. A borracha deixou de ser a única fonte de renda para se tornar um suplemento que lhes dava acesso a bens que não podiam produzir. E, quando o preço da borracha, na década de 1920, caiu a ponto de tornar insustentável esse sistema, muitos seringueiros do baixo Amazonas mudaram para a castanha-do-pará.


Em outras palavras, colher produtos da floresta por dinheiro ou bens se tornou um aspecto fundamental da vida rural na Amazônia. A economia extrativa existia muito antes da idade de ouro do comércio da borracha e persistiu, com algumas mudanças significativas, por quase um século depois de seu declínio. Os seringueiros de hoje não são remanescentes de uma prosperidade falida, mas participantes de um modo de vida bastante flexível e, para alguns, vantajoso o suficiente para ser uma presença contínua na história, na política e na sociedade da Amazônia. 

Aleks Palitot
professor e historiador

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