A história da arte é pródiga em exemplos de grandes artistas que tiveram suas obras incompreendidas no momento da produção, e morreram sem conhecer a glória do reconhecimento público. O mais notável deles foi Vincent van Gogh, que não conseguiu vender nenhum quadro durante sua conturbada vida no século XIX, embora atinja atualmente dezenas de milhões de dólares cada tela dele que vai a leilão. É também prodigiosa a transformação do conceito de arte ao longo do século XX. Desde que Marcel Duchamp pendurou um urinol masculino de cabeça para baixo e decretou que aquilo era arte, colocou em questionamento a “dimensão artística da arte”. Custa crer, para os incautos, que se possa chamar de arte um objeto industrial já pronto largamente utilizado, mas deslocado de sua finalidade inicial.
Neste caminho, algumas intervenções urbanas no último século igualmente causaram estranhamento. Se a princípio não foram pensadas como obras de arte, o tempo encarregou-se de dar a elas significados inimagináveis, simbolizando uma cidade de tal modo que a visão da obra remete imediatamente ao lugar. A Estátua da Liberdade, a Torre Eiffel e as Três Caixas d’Águas conduzem o imaginário do observador, respectivamente, as cidades de New York, Paris e Porto Velho. Os artistas que as conceberam, ainda que movidos pelo utilitarismo, pela grandiosidade ou pela estética, sofreram duras críticas pela incompreensão da plebe ignara e rude. O tempo, porém, soube premiar suas visões de futuro.
Na segunda década do século XXI, em Porto Velho, assiste-se a fenômeno semelhante. Uma das mais instigantes intervenções artísticas na paisagem urbana está em processo, sem que as pessoas percebam a grandiosidade da mudança. Esta é uma reação compreensível para um povo sem a formação estética necessária para apreciar o neo-concretismo iniciado na nossa bela e aprazível capital. Refiro-me ao conjunto de monólitos erigidos no cruzamento de nossas principais avenidas.
O povo olha para estas estruturas de concreto, flutuando na sua concreta aspereza, instigando nossos olhares e sensibilidades, e pensa que são ou serão viadutos. Nada mais longe da verdade. O individualismo da modernidade, a pressa cotidiana, os olhares descuidados impedem que se veja a beleza e se compreenda o significado destas instalações do neo-concretismo de autoria de um artista genial e visionário: Robert Nephew. Seu reconhecimento ainda está limitado à província, mas logo se expandirá para o Brasil e o mundo. Para além das Três Marias, nossa cidade também será reconhecida e visitada por turistas sequiosos de conhecer e apreciar a insustentável leveza dos “Três Viadutos”.
Este modesto ensaio crítico tem a função de desvelar os sentidos mais profundos, ocultos aos olhos menos treinados, permitindo a melhor fruição do neo-concretismo. Para quem sabe apreciar a arte, estes significados são transparentes e a análise aqui empreendida parecerá redundante.
O conjunto da obra recebe o título óbvio de “Da Incompletude”. De pouco adianta visitar apenas uma das instalações do Trevo do Roque, da Jatuarana ou da Campos Sales. Elas somente ganham o significado pleno quando apreciadas em conjunto, embora cada uma delas esteja impregnada de sentidos múltiplos e significações diversas. A incompletude do conjunto remete, obviamente, a condição provisória das coisas e da vida. Agora que os “viadutos” estão recobertos pela pátina do tempo (ferrugem e sujeira, dirão os ignotos!), melhor se pode apreciar sua mensagem entrópica. Nada mais há que se possa dizer completo e terminado, pois o mundo se dissolverá em caos e desordem.
Cada uma das obras de arte merece uma análise particular. O estilo arrojado do neo-concretismo de Robert Nephew melhor se revela quando cada obra é destacada. Por comodidade, seguindo o sentido leste-oeste, a primeira obra de arte a ser visitada é a instalação da BR 364 com a Avenida Jatuarana. São dois paredões de concreto em arco côncavo que interrompem o fluxo do tempo cotidiano, a nos lembrar a poética drummondiana, de que sempre tinha uma pedra no meio do caminho. Nenhum motorista, motociclista, ciclista ou pedestre, quando têm interrompidas suas existências de movimento incessante, esquecerá desse acontecimento na vida de suas retinas tão fatigadas. A terra bruta que recobre os costados dos paredões, e os tufos de capim selvagem que brotam pelas escarpas, simbolizam a indomável natureza amazônica, lembrando que o poder dos homens ainda está limitado pelo ambiente.
No Trevo do Roque, a dez metros de altura, levitam duas passarelas que conduzem de lugar algum a lugar nenhum. O perfeito paralelismo das rígidas estruturas instiga a imaginação. É inevitável que o observador seja interrogado com as questões fundamentais do humanismo: de onde viemos? Para onde vamos? Somente quem se pendura a beira do abismo e contempla o vórtice, encontra as verdadeiras respostas. O significado mais profundo não se revela para quem olha de baixo para cima, mas, ao contrário, para quem tem a coragem e a audácia de mirar o vazio que separa o céu da terra. A inspiração artística da obra é claramente estruturalista, identificando-se uma oposição estruturante nas formas concretas que parecem ir e voltar, abrindo passagem para os que partem e acolhendo os que chegam. Elas, as passarelas, representam as antípodas do pensamento humano e um caleidoscópio de alteridades provoca a sensibilidade: uma representa o ser e a outra o nada, uma nos fala da vida e a outra da morte, uma é masculina e a outra feminina, uma é corpo e a outra espírito.
Na terceira obra, no cruzamento da Avenida Campos Sales com a BR 364, a genialidade neo-concretista de Robert Nephew atinge seu ápice. Pode-se mesmo dizer que aquela instalação é a epifania do artista. A obra esconde, na simplicidade arquitetônica, a força significativa. É nítida a influência dos cubistas, posto que dois cubos vazados se confrontam, se enfrentam e separam todos os movimentos dos passantes. Não há compromisso do artista com a representação do real: eles parecem viadutos, embora não sejam. As fronteiras estão dissolvidas e as luzes dos semáforos, alternando a possibilidade e a proibição, introduzem elementos discursivos ausentes nas outras obras. Nas monumentais paredes verticais dos cubos revela-se, ainda, a influência dos grandes muralistas mexicanos, que Robert Nephew conheceu em suas viagens ao estrangeiro. Inspirado em Diego Rivera e José Orozco a instalação artística está aberta para a livre manifestação da sociedade, posto que a arte deve ter alcance social. As paredes estão recobertas por cartazes que anunciam shows, danças, músicas, promoções, convidando para a vida vivida que não conhece limites e se manifesta onde menos é esperada.
Mais acima, na mesma BR 364 com a Presidente Dutra, abre-se um enorme e enigmático buraco. Dele emergem estacas enferrujadas, como dedos que suplicam aos deuses perdão por pecados cometidos. Difícil admitir que um buraco seja uma obra de arte, ainda mais porque se trata de manifestação artística única no mundo. Nós, os comuns, somos aniquilados pela criatividade do artista que transcende seu tempo e envia mensagens para o porvir. Depois de séculos, quando a poeira e a lama cobrirem o buraco, os arqueólogos terão que decifrar o enigma.
Esta é uma constatação inquietante: Robert Nephew e o seu neo-concretismo podem ser compreendidos em alguns aspectos, mas jamais em todos. Labutamos em desvelar os significados e esclarecer a simbologia oculta nas manifestações artísticas. É uma luta vã, porém. A genialidade escapa a humana compreensão.
Os imediatistas, os céticos, os pobres de espírito, podem argumentar que este ensaio crítico não passa da mais pura conversa fiada. Eles dirão que os viadutos não são concluídos por corrupção e incompetência administrativa e os nossos dinheiros de impostos estão sendo consumidos para o nada, enquanto os políticos acumulam tudo. Sendo verdadeiros estes argumentos, só me resta concluir: não há obras de arte, embora sobre “artes” nas obras.
Ari Ott
Professor de antropologia da UNIR e crítico de arte bissexto
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