sexta-feira, 25 de novembro de 2022

INDÍGENAS DE RONDÔNIA, CULTURA E RESISTÊNCIA

 

OS MURA: TÃO PERIGOSOS QUANTO AS CACHOEIRAS

Durante todo o século 18 e parte do 19, os Mura reagiram ferozmente à colonização na região do Madeira. Vivendo de forma nômade em suas embarcações, eles dominavam o vasto território compreendido pelos rios Madeira, Solimões, Negro e Japurá, e ofereceram grande resistência à implantação de missões religiosas. A reação foi tão forte que, em 1738, a Companhia de Jesus promoveu uma devassa contra os Mura, por meio de um processo-crime iniciado pelo Padre Joseph de Souza para denunciar assassinatos cometidos contra indígenas remeiros que faziam a colheita do cacau – verdadeiro interesse dos jesuítas, segundo Marta Rosa Amoroso, autora do texto Corsários no Caminho Fluvial, os Mura do rio Madeira, parte do livro História dos Índios no Brasil (Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura e FAPESP) e disponível no link (http://www.etnolinguistica.org/hist:p297-310).

A intenção, de acordo com a autora, era obter da Coroa a legalização da guerra contra os Mura, e assim liberar a região do Madeira para o cultivo do cacau, produto de enorme valor comercial. A corte não deferiu o pedido – até porque, na época, não tinha interesse em facilitar o trânsito pelo Madeira até as minas de Mato Grosso e Goiás. E a simples presença dos Mura, mais do que a existência da sequência de cachoeiras, era suficiente para afugentar os mais ousados aventureiros. Porém, como ressalta Marta Rosa Amoroso em seu texto, “a reação belicosa dos Mura contra os agentes missionários … evidenciou os Mura como nação inimiga dos portugueses”.


Com a liberação da navegação comercial pelo Madeira, em 1753, os Mura passaram a saquear as embarcações, mas frente ao forte aparato bélico montado contra eles viram-se acuados e reduziram sua presença ao longo do rio. Dessa forma, entraram em contato com as vilas agrícolas (implantadas pelo Marquês de Pombal), com as quais ocorreram novos confrontos e consequentemente a escravização – apesar da proibição desta pela política indigenista pombalina.

Os Mura, ao lado dos Mundurukú e dos Karajá, de fato consistiram em casos de “exceção de liberdade” da lei estabelecida pelo Marques de Pombal, expediente que resultou, ao fim de alguns anos, em uma espécie de rendição e o assentamento em aldeias, em um episódio conhecido na história como “redução voluntária dos Mura”. No século seguinte, durante a Cabanagem (revolta popular e social contra o governo do Grão-Pará entre 1833 e 1839), “… os Mura participaram do levante contra as forças legalistas e sofreram reação militar violenta. Da história desse episódio, porém, pouco se sabe, pois na literatura paraense sobre a revolta, o índio é na maioria das vezes tratado de forma genérica”, segundo escreve Marta Rosa Amoroso.

Hoje, os Mura, com população estimada em 18 mil pessoas, lutam pela demarcação de suas terras e pelo resgate de sua identidade. Um retrato relativamente recente da situação desse povo foi feito em 2010 em uma reportagem do jornal português O Público (https://www.publico.pt/2010/07/11/jornal/murasos-indios-condenados–a-extincao-pelos-portugueses-19750708).

 

OS PARINTINTIN: ÚLTIMOS A SEREM PACIFICADOS

Também conhecido como Kawahiwa, esse grupo resistiu a todas as tentativas de catequese pelas missões religiosas e foi expulso do Tapajós por portugueses e indígenas da tribo Mundurukú em meados do século 19. Foi quando se estabeleceu no Madeira e entrou em conflito com os exploradores da borracha, situação que permaneceu até o século 20. Conforme escreve Darcy Ribeiro, “ali os seringueiros tinham quase sempre que trabalhar dois a dois: um sangrava a árvore, enquanto o outro o cobria com seu rifle, pronto para atirar sobre qualquer sombra que se movesse”.


Diante dessa situação e de algumas tentativas frustradas de pacificar a tribo, o Serviço de Proteção aos Índios (precursor da Funai, fundado em 1910) delegou a tarefa a Curt Nimuendajú, etnólogo alemão que conviveu com índios brasileiros por 40 anos. Em 1922, após chegar com o material necessário para se estabelecer permanentemente, já sofrer um primeiro ataque e construir um posto de trabalho, Curt dispensou a maior parte de seu pessoal, ficando com apenas mais seis homens.


Seguiram-se mais dois ataques, mas as flechas se partiam nas chapas de zinco que constituíam a casa. No terceiro, quando decidiram avançar para dentro da construção, Curt gritou na língua geral (evolução do tupi antigo), convidando-os a entrar. “Pela sua experiência guerreira eles deviam ter esperado nesse momento tudo menos um convite e, perplexos, pareciam prestar-me atenção por um momento. Mas logo redobraram a sua gritaria selvagem e, brandindo as armas, desapareceram pelo trilho de onde haviam saído”, relata Curt no texto Os Índios Parintintin do Rio Madeira, disponível no (http://www.etnolinguistica.org/biblio:nimuendaju-1924-parintintin).



Dois meses após a chegada, em um novo ataque, Curt, enfim, conseguiu estabelecer uma comunicação com eles, que se foram em paz e carregados de brindes. Toda essa interação, bem como as particularidades do processo de pacificação, com seus progressos e retrocessos, está descrita em detalhes no texto citado acima, publicado em 1924. Após quase um ano de trabalho, acabaram-se os recursos do SPI e Curt foi chamado de volta. Atualmente, a população estimada dos Parintintin é de 480 pessoas, que habitam terras demarcadas perto de Humaitá (AM).

 

OS KARITIANA: A TRIBO ISOLADA

Esse povo aparece na literatura apenas em 1909, mencionado por um membro da Comissão Rondon (encarregada, nessa época, de construir a linha telegráfica de Cuiabá a Santo Antônio). Até esse momento, a tribo havia conseguido se manter isolada, mas o encontro com os exploradores de borracha resultou em escravização e mortes, o que causou um brutal declínio da população – a ponto de Darcy Ribeiro tê-los considerado extintos, em 1957.



Esses embates causaram um deslocamento dos Karitiana, que passaram a viver nos arredores de Porto Velho, a partir de meados dos anos 50. Desde 1986, as terras desse povo estão demarcadas entre os rios Jacy-Parana e Candeias. A proximidade da aldeia com as cidades acelerou o processo intercultural. “O que se vê atualmente nos costumes daquele povo é uma mistura de tradições. O casamento, por exemplo, é celebrado com traços da cultura indígena e da cultura dos não-índios”, informa o texto O Povo Indígena Karitiana: Histórias de Lutas para Sobreviver ao Colonizador, de Gracilene Nunes da Silva e Miguel Nenevé (disponível no link (http://www.periodicos.unir.br/index.php/igarape/article/view/624/668).

Os Karitiana são os únicos remanescentes da família linguística Arikém, do tronco Tupi. Preservar o ensino dessa língua e rever os limites das terras demarcadas são as reivindicações atuais dessa população, que conta 333 pessoas.

 

Os Karipunas

 

Os povos da Floresta.

Os Sítios Arqueológicos em Porto Velho.

A partir de 2008, arqueólogos do Brasil inteiro se engajaram nos trabalhos que antecederam a construção de duas usinas hidrelétricas no rio Madeira. De certa forma, eles deram continuidade à pesquisa do pioneiro Eurico Miller, que nos anos 70 fez os primeiros estudos dessa natureza em Rondônia a pedido da concessionária da futura usina no rio Jamari, afluente do Madeira. Referência entre seus colegas, o gaúcho foi quem iniciou a montagem do quebra-cabeça, ao descobrir sítios de pelo menos 10 mil anos e formular hipóteses até hoje investigadas, como a região ter sido ponto de partida da dispersão do tupi-guarani para todo o país. Pesquisas mais recentes sugerem que também houve esferas de interação e redes de comércio envolvendo povos de língua arawak, originários do Caribe.



Dos 58 sítios escavados pela equipe contratada pela Santo Antônio Energia num trecho de 80 km ao longo do Madeira (entre a cachoeira de Santo Antônio e a foz do rio Jacy-Paraná), saíram amostras de até 7 mil anos atrás, capazes de traçar uma linha do tempo contínua até o século 20 – pois muitos artefatos resgatados remetem à época da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, importante evento da história recente da região. Os arqueólogos contabilizaram 294 mil fragmentos cerâmicos, 80 mil líticos (de pedra) e 71 mil históricos.

De acordo com  os relatórios do arqueólogo Renato Kipnis, que coordenou o programa, o trabalho realizado durante quatro anos demoraria quase um século para alcançar os mesmos resultados se estivesse restrito ao âmbito acadêmico. Comunidades próximas às escavações e até os operários da construção da usina se beneficiaram de ações educativas, enquanto a limpeza e a análise inicial de todas essas peças envolveram não só profissionais do ramo como também alunos, num trabalho com grande potencial de formação e capacitação – inclusive, o curso de graduação em Arqueologia da UNIR nasceu na esteira dessas prospecções e está colocando no mercado toda uma geração local de profissionais que darão continuidade a esses estudos.



Por meio da estratigrafia (análise da sequência de camadas de sedimentos e de seu conteúdo), foi possível entender que por aqueles lugares passaram povos caçadores-coletores – nômades – e depois comunidades mais assentadas (os agricultores incipientes), que provavelmente também se deslocavam de tempos em tempos, numa espécie de rodízio espontâneo. Tal conclusão é viável graças à comparação entre o material de vários sítios próximos, como foi o caso aqui. Trata-se, portanto, de uma região com ocupações contínuas, consistentes, de longa duração e com evidências de domesticação de plantas e de manejo da paisagem. Um dos desafios, agora, é buscar o elo entre as ocupações antigas e as populações indígenas que existem até hoje. Prudentes e cautelosos, os arqueólogos evitam elucubrações sem base científica. Preferem se concentrar no puzzle, que vai ficando maior e mais desafiador à medida que novas peças são encontradas e detalhadamente analisadas.

 

A TERRA PRETA

Muito frequente na Amazônia, esse tipo de solo resulta obrigatoriamente da presença humana, que ali teria exercido uma ação transformadora, ao ocupar os mesmos locais durante largos intervalos de tempo. Trata-se de um solo fértil, procurado até hoje por famílias para agricultura de subsistência. Os mais antigos sítios de terra preta já registrados situam-se ao longo do rio Madeira, onde os arqueólogos já chegaram a uma datação de 6,5 mil anos e não localizaram fragmentos cerâmicos. Isso quer dizer que não necessariamente a prática do cultivo está associada ao uso cotidiano da cerâmica, como já se pensou. O conhecimento sobre a utilidade de cada tipo de planta e seu manejo, portanto, antecede o desenvolvimento da tecnologia cerâmica, uma importante contribuição para cronologia dos tipos de ocupação que houve ali.

 

 

AS PEÇAS ENCONTRADAS RECENTEMENTE

O imenso volume de material coletado e identificado em quatro anos de trabalho ficará sob os cuidados de um museu ligado à Universidade Federal de Rondônia, mas já se encontra disponível para pesquisadores de todo o mundo – que, como é praxe na arqueologia, devem se basear nos estudos já realizados para prosseguir a investigação. Embora a maioria dos artefatos sejam apenas fragmentos, a partir dos quais se projeta a aparência da peça, houve aquelas que foram resgatadas praticamente inteiras, como as urnas funerárias. A análise dessas cerâmicas leva a crer que, antes de cumprir a função ritualística, as vasilhas serviram como panelas ou recipientes para guardar comida ou bebida, o que evidencia sua multifuncionalidade. E nem sempre elas contêm ossos, o que levanta duas hipóteses: ou eles se deterioraram por causa do solo ácido ou o ritual de enterramento começava com a cremação.

 


Os arqueólogos ainda não sabem a autoria dos entalhes nas rochas, encontrados nas corredeiras do madeira.

Muitas das peças pertencem à tradição polícroma, que se caracteriza por pinturas em vermelho, preto e branco em objetos com muita modelagem e um vasto repertório decorativo, plástico e estético. Segundo as pesquisas do arqueólogo Eduardo Góes Neves, que estuda a Amazônia há cerca de 30 anos, o relato de Gaspar de Carvajal já menciona essas cerâmicas e chega a descrevê-las como mais bonitas que as de Málaga ou as gregas. Hoje, essa tradição ainda persiste na produção realizada na Ilha do Marajó. Outra formação impressionante, porém impossível de remover e de datar, são os petróglifos: grandes entalhes em pedrais situados no meio do rio com padrões geométricos, abstratos, recorrentes também em outras partes do mundo. A solução encontrada pela equipe para não perder esses tesouros, identificados em 16 pontos, foi fazer gigantes decalques em tecido e, adicionalmente, uma espécie de escaneamento tridimensional que permite a reprodução da superfície inteira numa impressora 3D, por exemplo. Esses registros viabilizam o prosseguimento dos estudos, já que os pedrais agora estão submersos e a autoria permanece desconhecida. Os arqueólogos ainda não precisaram a autoria desses entalhes nas rochas encontrados em meio às corredeiras do Madeira. O registro em tecido e digital torna possível prosseguir com a investigação.


ALEKS PALITOT

Professor e Historiador

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