OS MURA: TÃO PERIGOSOS QUANTO AS CACHOEIRAS
Durante todo o século 18 e parte
do 19, os Mura reagiram ferozmente à colonização na região do Madeira. Vivendo
de forma nômade em suas embarcações, eles dominavam o vasto território
compreendido pelos rios Madeira, Solimões, Negro e Japurá, e ofereceram grande
resistência à implantação de missões religiosas. A reação foi tão forte que, em
1738, a Companhia de Jesus promoveu uma devassa contra os Mura, por meio de um
processo-crime iniciado pelo Padre Joseph de Souza para denunciar assassinatos
cometidos contra indígenas remeiros que faziam a colheita do cacau – verdadeiro
interesse dos jesuítas, segundo Marta Rosa Amoroso, autora do texto Corsários
no Caminho Fluvial, os Mura do rio Madeira, parte do livro História dos Índios
no Brasil (Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura e FAPESP) e
disponível no link (http://www.etnolinguistica.org/hist:p297-310).
Os Mura, ao lado dos Mundurukú e
dos Karajá, de fato consistiram em casos de “exceção de liberdade” da lei
estabelecida pelo Marques de Pombal, expediente que resultou, ao fim de alguns
anos, em uma espécie de rendição e o assentamento em aldeias, em um episódio
conhecido na história como “redução voluntária dos Mura”. No século seguinte,
durante a Cabanagem (revolta popular e social contra o governo do Grão-Pará
entre 1833 e 1839), “… os Mura participaram do levante contra as forças
legalistas e sofreram reação militar violenta. Da história desse episódio,
porém, pouco se sabe, pois na literatura paraense sobre a revolta, o índio é na
maioria das vezes tratado de forma genérica”, segundo escreve Marta Rosa
Amoroso.
Hoje, os Mura, com população
estimada em 18 mil pessoas, lutam pela demarcação de suas terras e pelo resgate
de sua identidade. Um retrato relativamente recente da situação desse povo foi
feito em 2010 em uma reportagem do jornal português O Público
(https://www.publico.pt/2010/07/11/jornal/murasos-indios-condenados–a-extincao-pelos-portugueses-19750708).
OS PARINTINTIN: ÚLTIMOS A SEREM PACIFICADOS
Também conhecido como Kawahiwa,
esse grupo resistiu a todas as tentativas de catequese pelas missões religiosas
e foi expulso do Tapajós por portugueses e indígenas da tribo Mundurukú em
meados do século 19. Foi quando se estabeleceu no Madeira e entrou em conflito
com os exploradores da borracha, situação que permaneceu até o século 20.
Conforme escreve Darcy Ribeiro, “ali os seringueiros tinham quase sempre que
trabalhar dois a dois: um sangrava a árvore, enquanto o outro o cobria com seu
rifle, pronto para atirar sobre qualquer sombra que se movesse”.
Dois meses após a chegada, em um
novo ataque, Curt, enfim, conseguiu estabelecer uma comunicação com eles, que
se foram em paz e carregados de brindes. Toda essa interação, bem como as
particularidades do processo de pacificação, com seus progressos e retrocessos,
está descrita em detalhes no texto citado acima, publicado em 1924. Após quase
um ano de trabalho, acabaram-se os recursos do SPI e Curt foi chamado de volta.
Atualmente, a população estimada dos Parintintin é de 480 pessoas, que habitam
terras demarcadas perto de Humaitá (AM).
OS KARITIANA: A TRIBO ISOLADA
Esse povo aparece na literatura
apenas em 1909, mencionado por um membro da Comissão Rondon (encarregada, nessa
época, de construir a linha telegráfica de Cuiabá a Santo Antônio). Até esse
momento, a tribo havia conseguido se manter isolada, mas o encontro com os
exploradores de borracha resultou em escravização e mortes, o que causou um
brutal declínio da população – a ponto de Darcy Ribeiro tê-los considerado
extintos, em 1957.
Esses embates causaram um
deslocamento dos Karitiana, que passaram a viver nos arredores de Porto Velho,
a partir de meados dos anos 50. Desde 1986, as terras desse povo estão
demarcadas entre os rios Jacy-Parana e Candeias. A proximidade da aldeia com as
cidades acelerou o processo intercultural. “O que se vê atualmente nos costumes
daquele povo é uma mistura de tradições. O casamento, por exemplo, é celebrado
com traços da cultura indígena e da cultura dos não-índios”, informa o texto O
Povo Indígena Karitiana: Histórias de Lutas para Sobreviver ao Colonizador, de
Gracilene Nunes da Silva e Miguel Nenevé (disponível no link
(http://www.periodicos.unir.br/index.php/igarape/article/view/624/668).
Os Karitiana são os únicos
remanescentes da família linguística Arikém, do tronco Tupi. Preservar o ensino
dessa língua e rever os limites das terras demarcadas são as reivindicações
atuais dessa população, que conta 333 pessoas.
Os Karipunas
Os povos da Floresta.
Os Sítios Arqueológicos em Porto Velho.
A partir de 2008, arqueólogos do
Brasil inteiro se engajaram nos trabalhos que antecederam a construção de duas
usinas hidrelétricas no rio Madeira. De certa forma, eles deram continuidade à
pesquisa do pioneiro Eurico Miller, que nos anos 70 fez os primeiros estudos
dessa natureza em Rondônia a pedido da concessionária da futura usina no rio
Jamari, afluente do Madeira. Referência entre seus colegas, o gaúcho foi quem
iniciou a montagem do quebra-cabeça, ao descobrir sítios de pelo menos 10 mil
anos e formular hipóteses até hoje investigadas, como a região ter sido ponto
de partida da dispersão do tupi-guarani para todo o país. Pesquisas mais
recentes sugerem que também houve esferas de interação e redes de comércio
envolvendo povos de língua arawak, originários do Caribe.
Dos 58 sítios escavados pela
equipe contratada pela Santo Antônio Energia num trecho de 80 km ao longo do
Madeira (entre a cachoeira de Santo Antônio e a foz do rio Jacy-Paraná), saíram
amostras de até 7 mil anos atrás, capazes de traçar uma linha do tempo contínua
até o século 20 – pois muitos artefatos resgatados remetem à época da
construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, importante evento da história
recente da região. Os arqueólogos contabilizaram 294 mil fragmentos cerâmicos,
80 mil líticos (de pedra) e 71 mil históricos.
De acordo com os relatórios do arqueólogo Renato Kipnis,
que coordenou o programa, o trabalho realizado durante quatro anos demoraria
quase um século para alcançar os mesmos resultados se estivesse restrito ao
âmbito acadêmico. Comunidades próximas às escavações e até os operários da
construção da usina se beneficiaram de ações educativas, enquanto a limpeza e a
análise inicial de todas essas peças envolveram não só profissionais do ramo
como também alunos, num trabalho com grande potencial de formação e capacitação
– inclusive, o curso de graduação em Arqueologia da UNIR nasceu na esteira
dessas prospecções e está colocando no mercado toda uma geração local de
profissionais que darão continuidade a esses estudos.
Por meio da estratigrafia
(análise da sequência de camadas de sedimentos e de seu conteúdo), foi possível
entender que por aqueles lugares passaram povos caçadores-coletores – nômades –
e depois comunidades mais assentadas (os agricultores incipientes), que
provavelmente também se deslocavam de tempos em tempos, numa espécie de rodízio
espontâneo. Tal conclusão é viável graças à comparação entre o material de
vários sítios próximos, como foi o caso aqui. Trata-se, portanto, de uma região
com ocupações contínuas, consistentes, de longa duração e com evidências de
domesticação de plantas e de manejo da paisagem. Um dos desafios, agora, é
buscar o elo entre as ocupações antigas e as populações indígenas que existem
até hoje. Prudentes e cautelosos, os arqueólogos evitam elucubrações sem base
científica. Preferem se concentrar no puzzle, que vai ficando maior e mais
desafiador à medida que novas peças são encontradas e detalhadamente
analisadas.
A TERRA PRETA
Muito frequente na Amazônia, esse
tipo de solo resulta obrigatoriamente da presença humana, que ali teria
exercido uma ação transformadora, ao ocupar os mesmos locais durante largos
intervalos de tempo. Trata-se de um solo fértil, procurado até hoje por
famílias para agricultura de subsistência. Os mais antigos sítios de terra preta
já registrados situam-se ao longo do rio Madeira, onde os arqueólogos já
chegaram a uma datação de 6,5 mil anos e não localizaram fragmentos cerâmicos.
Isso quer dizer que não necessariamente a prática do cultivo está associada ao
uso cotidiano da cerâmica, como já se pensou. O conhecimento sobre a utilidade
de cada tipo de planta e seu manejo, portanto, antecede o desenvolvimento da
tecnologia cerâmica, uma importante contribuição para cronologia dos tipos de
ocupação que houve ali.
AS PEÇAS ENCONTRADAS RECENTEMENTE
O imenso volume de material
coletado e identificado em quatro anos de trabalho ficará sob os cuidados de um
museu ligado à Universidade Federal de Rondônia, mas já se encontra disponível
para pesquisadores de todo o mundo – que, como é praxe na arqueologia, devem se
basear nos estudos já realizados para prosseguir a investigação. Embora a
maioria dos artefatos sejam apenas fragmentos, a partir dos quais se projeta a
aparência da peça, houve aquelas que foram resgatadas praticamente inteiras, como
as urnas funerárias. A análise dessas cerâmicas leva a crer que, antes de
cumprir a função ritualística, as vasilhas serviram como panelas ou recipientes
para guardar comida ou bebida, o que evidencia sua multifuncionalidade. E nem
sempre elas contêm ossos, o que levanta duas hipóteses: ou eles se deterioraram
por causa do solo ácido ou o ritual de enterramento começava com a cremação.
Os arqueólogos ainda não sabem a
autoria dos entalhes nas rochas, encontrados nas corredeiras do madeira.
Muitas das peças pertencem à
tradição polícroma, que se caracteriza por pinturas em vermelho, preto e branco
em objetos com muita modelagem e um vasto repertório decorativo, plástico e
estético. Segundo as pesquisas do arqueólogo Eduardo Góes Neves, que estuda a
Amazônia há cerca de 30 anos, o relato de Gaspar de Carvajal já menciona essas
cerâmicas e chega a descrevê-las como mais bonitas que as de Málaga ou as
gregas. Hoje, essa tradição ainda persiste na produção realizada na Ilha do
Marajó. Outra formação impressionante, porém impossível de remover e de datar,
são os petróglifos: grandes entalhes em pedrais situados no meio do rio com
padrões geométricos, abstratos, recorrentes também em outras partes do mundo. A
solução encontrada pela equipe para não perder esses tesouros, identificados em
16 pontos, foi fazer gigantes decalques em tecido e, adicionalmente, uma
espécie de escaneamento tridimensional que permite a reprodução da superfície
inteira numa impressora 3D, por exemplo. Esses registros viabilizam o prosseguimento
dos estudos, já que os pedrais agora estão submersos e a autoria permanece
desconhecida. Os arqueólogos ainda não precisaram a autoria desses entalhes nas
rochas encontrados em meio às corredeiras do Madeira. O registro em tecido e
digital torna possível prosseguir com a investigação.
ALEKS PALITOT
Professor e Historiador
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